Análise – Black Myth: Wukong
Este é um daqueles jogos que serão “tudo ou nada”. Quando apareceu, Black Myth: Wukong mostrou-se visualmente cativante, mas de uma produtora desconhecida e num género saturado. Poucos apostariam nele mas eis a surpresa.
É que, antes deste jogo, a produtora Chinesa Game Science era mais dada a jogos mobile com um alcance e rigor técnico diferente, com 100 Heroes (inteiramente mobile) e Art of War: Red Tides (mobile e PC) a preencher o seu sucinto portfólio desde 2014. Não é que os jogos se meçam exclusivamente pelo tamanho e sucesso passado das suas produtoras, obviamente. Há imensos casos de sucesso de pequenas empresas inexperientes a apostar forte num IP e a atingir o estrelato. Contudo, nem todos conseguem mesmo criar um “soulslike” AAA com um visual impressionante e que atinge 10 milhões de unidades vendidas em apenas três dias. Vamos tentar perceber porque é que tanta gente o está a jogar.
Um dos elementos mais evidentes que terá contribuído para este sucesso, claro, é o tema. Este é um jogo inspirado na mitologia Chinesa, mais propriamente no conto ancestral “Jornada ao Oriente”. Já no passado vimos como jogos inspirados noutros contos, como o infame “Romance dos Três Reinos” se tornam rapidamente num sucesso de vendas. Não é bem porque o mundo se arrebata com estas histórias, será mais porque o mercado Chinês absorve avidamente estes temas, pelas razões óbvias. Claramente BM: Wukong é atraente ao vastíssimo mercado Chinês, até porque é bem possível que, por ser produzido por lá, o jogo tenha um preço mais simpático (pura especulação aqui).
O outro elemento que é perfeitamente evidente tratar-se de um chamariz, é o seu visual. Desde cedo, nas poucas promoções que foram mostrando o jogo, ficou bem claro que este jogo estava aqui para deslumbrar. Alie-se a isso um género de acção ARPG (mais ou menos, já lá vamos), inspirado nos famosos “soulslike” que são, também eles, bastante populares, é claro que este jogo chamaria a vossa atenção. Há, depois, a evidente publicidade virtal de criadores de conteúdo escolhidos a dedo para falar do jogo, talvez por “contratos” com a produção, para o fazer brilhar ainda mais. O resultado é este profundo interesse em perceber o que raio é Black Myth: Wukong. Vamos então a isso.
Após uma missão de sucesso, o semi-deus Sun Wukong rejeita a divindade e escolhe viver em paz na sua humilde montanha. Contudo os demais membros da corte dos deuses ficam irados com o desafio lançado pela desobediência deste semi-deus e decidem enviar um autêntico exército para o capturar. Apesar dos seus melhores esforços, Wukong acaba mesmo capturado, não sem antes libertar seis relíquias que correspondem aos seus seis sentidos. Essas relíquias espalham-se pela Terra (mais precisamente na China) e tornam-se mitos para os locais. Entre eles, estão os macacos do Monte Huaguo que cobiçam as relíquias de Wukong e pretendem restaurar a sua glória.
É então que entramos em acção, personificando um desses jovens símios guerreiros enviados para recuperar as relíquias. Qual paladino para tentar libertar o semi-deus, o chamado “Destinado” passa por vários locais, enfrentando vários perigos, em particular de defensores das relíquias, autênticos bosses enviados da corte dos deuses, ajudando também os locais a libertarem-se da pressão desses deuses irados. Pelo caminho, também travamos conhecimento com outros paladinos que nos ajudarão a enfrentar alguns dos bosses ou indicar-nos caminhos para seguir. No final, o “Destinado” ainda enfrentará uma improvável ameaça para cumprir o seu derradeiro objectivo.
Com seis relíquias para angariar, esta história desenrola-se exactamente no mesmo número de capítulos. Há também vários fins possíveis, baseados em alguns feitos em jogo. Curiosamente, sem querer revelar muito da história, há até uma batalha opcional antes do confronto final que vos pode alterar o final do jogo. Ignorem-na e nunca saberão que é tão importante para enfrentar a derradeira trama. Há também alguns finais possíveis activados se não conseguirmos objectivos, como, por exemplo, se formos derrotados no último embate. No fundo, a história é suficientemente linear para nos levar ao ápice mas podemos alterar o desfecho do “Destinado” de forma a obter um final diferente.
Obviamente, em tudo isto há uma certa estranheza por uma cultura e uma história que nos é profundamente desconhecida. Diria que não é assim tão invulgar quanto outras histórias que nos chegam do Oriente mas há sempre uma certa dose de estranheza incontornável. No rigor, porém, é um enredo perfeitamente normal no género de histórias que falam de um herói “terreno”, que toma uma missão aparentemente impossível e cujo objectivo é tão nobre como suicida. O que é também uma curiosa analogia com a missão da Game Science de enfrentar esta indústria implacável, tentando criar um AAA vindo “do nada” e atingir um objectivo aparentemente impossível.
Nas últimas semanas, tenho lido como todos esperavam que este fosse um “soulslike” linear, mais um para a vasta lista de jogos que quer “comer do mesmo bolo” criado pela FromSoftware. Seria logicamente “em linha” com outros jogos vindos da China, tantos que tentam emular os sucessos do Ocidente mas apontando para as massas. Por isso, será justo dizer que BM: Wukong é uma emulação directa de um ARPG clássico? A produção bem tentou alterar uns quantos elementos da fórmula para que não fosse uma real cópia de Dark Souls ou até de Elden Ring. Ainda assim, é óbvio que há paralelos incontornáveis com esses jogos e também é óbvio que quem não gosta desse tipo de acção, também não vai gostar deste jogo.
Um dos elementos da fórmula que distinguem este jogo dos demais “soulslike” é a facilidade da maioria dos encontros iniciais (e no geral). Os primeiros momentos de BM: Wukong revelam-se algo fluidos, porque tudo parece fácil, quase a roçar o género “hack’n’slash” sem a rigidez dos mitologicamente difíceis títulos deste género. Talvez venha daqui a tal percepção que, se calhar, este não é bem um “soulslike” clássico. Só que isto é um engodo. Assim que chegam aos primeiros mini-bosses, começam logo a encontrar uma certa dose de dificuldade familiar, embora a vossa perícia e muita da vossa paciência sejam mesmo testadas quando chegarem aos guardiões das relíquias, os verdadeiros bosses em jogo. Então, subitamente, descobrem que, afinal, este jogo é mais “soulslike” que o que se apregoa por aí.
Na verdade, muita coisa é francamente familiar aqui, apesar de tanta gente afirmar que este jogo “é diferente”. Diferente será, amiúde, como já disse, mas não ao ponto de catalogar a interacção noutro género. Temos também combates intrincados que exigem dedicação para irmos melhorando prestações. Temos de ganhar pontos de experiência matando inimigos e lidando com uma barra de energia (stamina). Temos também os infames checkpoints, em jeito de “bonfires”, os altares, onde podemos recuperar energia perdida, repondo também as poções de regeneração e revivendo os inimigos na área. Enfim, tudo o que esperariam de um “soulslike”. A principal diferença nas mecânicas de jogo, é que não terão de voltar ao último ponto onde morreram para recuperar os pontos de experiência perdidos. Isso, quanto a mim, não chega para dizer que este “não é bem um ‘soulslike’ tradicional”.
Temos também um design de níveis bem mais linear, sendo por vezes labiríntico, convidando-nos a procurar atalhos. Não temos armas para escolher, ficando obrigados a usar um bastão ao longo do jogo. Contudo, temos na mesma de escolher posturas de combate para obter diferentes tipos de ataque, uns mais fortes que outros, com óbvia penalização na barra de energia. Diferentes ataques permitem encher a barra de foco que, uma vez preenchida, permite ataques ainda mais poderosos. Temos ainda a possibilidade de invocar espíritos temporários que vamos encontrando e temos os úteis feitiços que usam mana e possuem um cooldown associado. Estes feitiços agem como uma alternativa estratégica de combate, seguindo um pouco na lógica dos “sigs” da série The Witcher, obviamente com efeitos bem mais devastadores.
De resto, os amantes deste tipo de jogos não encontrarão algo assim tão diferente quanto isso. O combate com o bastão exige entrar numa coreografia entre ataque, desvio e defesa, perfeitamente em linha com o que conhecem, não tendo grande dificuldade em dominar. O uso das invocações e dos feitiços permite alguma variedade interessante mas não contem muito com eles por serem actos temporários. É preciso mesmo dominar o bastão e, confesso, aí as coisas são um pouco medianas. Como sempre acontece nestes “soulslike”, o “timing” é tudo e os erros pagam-se caro. Há contudo uma certa vontade do jogo nos levar a um dispensável “button-mashing”, evidente em alguns confrontos mais morosos. Os confrontos tornam-se assim pouco memoráveis e chegam a ser repetitivos, de facto, o seu maior problema a médio prazo.
Obviamente, estes jogos com uma fórmula tão específica e que exigem repetir os embates aprendendo com os erros, são sempre um pouco repetitivos. Contudo, noutros ARPG aposta-se em estratégias diferentes no decorrer da trama, encontrando um inimigo que tem uma coreografia ou uma fórmula distinta, que nos surpreende ou obriga a mudar de estratégia. Aqui, isso não acontece tanto, pelo menos não com a frequência que eu gostaria. Tudo é bastante linear, focado em mecânicas algo fixas que, lá mais para frente, não evoluem muito. Por outro lado, não há um real sentido de progressão ou de conquista. Vamos de capítulo em capítulo sem grandes desenvolvimentos ou alterações na história ou jogabilidade. É uma caminhada para um final inevitável e penso que isso levará a que muitos se aborreçam ou acabem o jogo e jamais voltem a ele.
Não é que os “soulslike” sejam assim tão interessantes para recomeçar mas há um certo incentivo em alguns destes jogos para reiniciar as suas jornadas, nem que seja para tomar caminhos diferentes ou apostar noutro dos finais alternativos, sem esquecer a esperança que escolher outro nível de dificuldade nos traga outro desafio. Só que BM: Wukong não tem níveis de dificuldade seleccionáveis e, como já disse, é até um jogo relativamente fácil, tirando os seus vários bosses mais desafiantes. É um pouco complicado justificar um reinício, sem nenhum incentivo para algo realmente novo na sua linearidade. Dirão que não é pela repetição que jogam este tipo de jogos mas, enfim, um jogo é um investimento financeiro. Se o terminamos ao fim de umas 20 horas (em média), dá que pensar.
Há que jogar, então, de uma forma que realmente preencha as medidas do investimento feito e, claro, do hype gerado em torno deste jogo. Jogar mais pausadamente, voltando atrás a áreas já concluídas para encontrar tudo o que oferecem, inclusive personagens com diálogos únicos, é uma forma. Talvez fosse este o objectivo da produção, em vez de ir “a correr” para o final. É também convidativo procurar peças de decoração em vendedores que encontramos para personalizar o nosso símio, embora, nesse caso, parta um pouco da intenção do jogador de apreciar mesmo o limite do que oferece. Entendo quem goste tanto completar tudo ao máximo. Só não sei se todos estarão com essa disposição.
Devo dizer, todavia, que essa exploração poderá ser algo frustrante. Como já disse, os níveis são perfeitamente lineares, sem muitas rotas alternativas, o que dá a entender que é fácil navegar pelo cenário. Mas, boa sorte a confiar somente na vossa intuição ou memória. Não há um mapa em jogo, nem sequer setas de orientação para saber onde ir. Vários jogos vivem bem com isto mas aqui, dadas algumas áreas tão labirínticas, dei por mim algo perdido em alguns momentos. Chega a ser aborrecido passar pelas mesmas áreas várias vezes para perceber que estamos a andar em círculos. Não acontece sempre, felizmente, mas é mais frequente que eu desejaria. A produção terá achado desnecessário um mapa por ter desenhado os níveis como autênticos corredores de A para B mas, acreditem, não é sempre tão fácil orientar-nos.
Por outro lado, na versão analisada (PC), houve uma certa inconsistência de qualidade. Quebras de performance (fps) foram várias, assim como diversos momentos mais graves de uma notória falta de optimização, levando a stutters e freezes temporários. Notem que não foi falta minha de hardware, já que o PC cumpra e ultrapassava o hardware recomendado. Parecia mesmo que o jogo estava a “falhar” ocasionalmente na sincronização do visual com a acção, levando mesmo a golpes falhados ou ao uso de comandos atrasado ou até errados. Vi também vários erros de localização, com diálogos em Chinês quando escolhi Inglês ou até de inteiras linhas de diálogo que desapareceram por completo. É aqui que recordamos a inexperiência da produtora. Encolhemos os ombros e aceitamos, esperando por correcções.
Veredicto
Compreendo agora todo este hype em torno de Black Myth: Wukong. Numa primeira abordagem, tem um visual deslumbrante, desenhado com imenso gosto, numa história que pode não ser para todos mas é bem contada, numa óptima aventura que entusiasma desde logo. Infelizmente, apesar das promessas, é só mesmo um “soulslike” com mecânicas (muito) ligeiramente diferentes, banalizando-se onde interessa: na acção. Não deixa de ser uma óptima experiência ARPG, apenas não traz nada realmente inovador à fórmula, mesmo quando tenta ser diferente. Por outro lado, nota-se que é uma primeira tentativa da Game Science de entrar neste exigente mercado dos AAA, vendo algumas falhas e erros técnicos que precisavam de mais polimento. É, ainda assim, um dos melhores jogos do momento, desejando já uma sequela… aprendendo com os erros.
- ProdutoraGame Science
- EditoraGame Science
- Lançamento20 de Agosto 2024
- Plataformas
- GéneroAcção, Role Playing Game
Equilibrado e com boas ideias, os seus erros não o impedem de brilhar.
Mais sobre a nossa pontuação- Design geral e grafismo para deslumbrar
- Boa fórmula de jogo "soulslike" com umas nuances
- Alguns combates memoráveis com bosses
- Muitos erros técnicos na versão PC
- Bastante repetitivo na sua segunda metade
- Falta um mapa e mais orientações
Esta análise foi realizada com uma cópia adquirida pela redacção.