Análise – Kena: Bridge of Spirits
O meu primeiro contacto com Kena: Bridge of Spirits foi de familiaridade. Certamente que a produtora Ember Lab quiz criar algo verdadeiramente único no seu jogo. Contudo, é inevitável recordar aquela que julgo ser a sua maior inspiração, The Legend of Zelda. De facto, esta podia ser uma boa resposta da PlayStation à franquia da Nintendo, mas…
É que o jogo foi originalmente listado como um dos jogos exclusivos da PlayStation 5. E, durante algum tempo, as promoções levavam a crer que seria mesmo um jogo de produção dedicada à consola mais recente da Sony. Com a proximidade do lançamento (e consequente adiamento), porém, ficou claro que, afinal, Kena também seria lançado para a PlayStation 4… e PC (via Epic Games Store). Continua a ser um exclusivo PlayStation, sim, mas parece que o será temporariamente nas consolas. Entendem porque toco no assunto, certamente. Zelda é um colosso de sucesso da Big-N e há anos que a Sony e outras empresas tenta criar algo para lhe fazer frente. Não é que Kena seja, de facto, um “Zelda-killer”, como irão ver. Mas, era um começo. Parece que alguém deixou passar a oportunidade.
Este é um conto sobre um mundo de fantasia, com uma mensagem bem mais profunda que se esconde num tom algo juvenil e acessível a várias audiências. A heroína, Kena, é como uma guia do mundo dos espíritos, afastando os que ainda deambulam, por tentar ajudá-los nos seus rancores e medos para que possam viver a eternidade em paz. Iniciamos o jogo com Kena na sua tarefa pacífica, quando é confrontada com um espírito que se opõe aos seus esforços. Depois de uma sucinta batalha, Kena revela-se também uma competente guerreira com o seu bastão, derrotando estes novos espíritos malignos que assolam o ambiente.
A história desenvolve-se daqui, com a guia a tentar descobrir os motivos do mal que se espalha pela região, tentando resolvê-lo e devolver a paz. A dada altura, a caminho de uma montanha sagrada, encontramos pequenos seres que habitam na floresta. Chamam-se Rot e possuem poderes especiais para manipular o ambiente. Também podem pegar em objectos para ajudar a aceder a novas áreas, ajudam a resolver puzzles e até podem combater os inimigos ao nosso lado e “limpar” a floresta da sua influência. Também iremos encontrar duas pequenas crianças, Saiya e Beni que precisam de ajuda a guiar o seu irmão Taro. Em todos os encontros e embates, Kena vai evoluindo, ganhando experiência, novos poderes e até novas habilidades e armas.
A demanda de Kena é bem mais profunda que combater espíritos malignos e fazer-se acompanhar de seres felpudos. Notarão que esta heroína tem uma cicatriz no seu braço, escondida por uma manga mais comprida mas que cedo fará parte de uma história bem mais pessoal. Esta ferida é bem mais que física, tendo sido causada por uma experiência traumática que envolve o seu pai. Esta é a porção de enredo que se tornará cada vez mais relevante lá mais para a frente. Ou seja, por detrás de um tom claramente jovial e colorido, está uma mensagem complexa e adulta de busca por redenção e respostas profundas, enquanto tentamos fazer sentido do que é a vida além da morte.
Entretanto, o jogo equilibra esse tom mais sério com imensos detalhes “simpáticos”. Os Rot, como podem imaginar, são pequenos seres que vamos coleccionando (100 ao todo) e que nos acompanham para todo o lado, teleportam-se, comem fruta e emitem sons ternurentos, enquanto nos ajudam nas nossas tarefas. Kena também tem uma presença gentil, com uma voz simpática e uma expressão amigável. Só mesmo quando entramos em alguma caverna sombria, ou revivemos uma memória passada, é que teremos o regresso a um tom bem menos alegre. O balanço é delicado mas até funciona bem quando é preciso, ajudado por paletas de cores e efeitos visuais diferentes.
A produtora Ember Lab é composta por cerca de 15 pessoas. Uma constatação que tanto pode ser um elogio, como um aviso a todos os que esperavam por algo maior. Por um lado, ver este resultado vindo de uma equipa tão pequena, é um triunfo que impressiona e inspira qualquer pequeno estúdio a sonhar. Por outro, faz com que as ambições que falei no início, de criar algo que fizesse frente a Zelda, ficam um pouco aquém. Não é que a dimensão de uma equipa dite a real qualidade de um jogo. Mas, assim de repente, faz-me lembrar a ambição de uma pequena produtora chamada Hello Games e um tal de No Man’s Sky. Felizmente, a Ember Lab não caiu no erro da megalomania desse outro título (curiosamente também exclusivo PlayStation no arranque).
Isso não quer dizer que não mostre ter ganas de lá chegar. Tecnicamente, Kena é relativamente competente, tirando bom proveito do hardware na versão que analisei na PlayStation 5. Graficamente, tem momentos fantásticos, seja a 60fps e 4K no modo “performance”, seja a 30fps e 4K no modo “fidelidade”. Tem uma direcção de arte muito positiva, cheia de animações e efeitos visuais muito bem realizados. O mundo do jogo mostra imensos biomas diferentes, das florestas, às montanhas, criando um mundo variado e repleto de detalhes. As cenas intermédias são realizadas com imensa atenção aos detalhes, como se de um filme de animação se tratasse. A implementação na PS5 complementa-se com uma boa integração do comando DualSense, que nos dá aquela imersão fantástica. De facto, não é um jogo AAA… mas, parece!
É só quando nos debruçamos na acção que surgem as limitações. Nem todas são realmente evidentes ou intrusivas e não considerei nenhuma delas grave. São apenas pequenas questões de conceito que talvez precisassem de mais desenvolvimento nas ideias originais ou de algum trabalho adicional de polimento. Um dos maiores exemplos disto que falo é a constante falta de orientação a guiar o jogador. Durante as porções de exploração, não temos muitos ícones, setas de orientação ou explicação de mecânicas. Parte-se do suposto que tudo é intuitivo… mas, não é. Mesmo o uso dos Rot acaba por se basear em intuição, apenas com uns sucintos e escassos textos a indicar algumas habilidades e funcionalidades.
O que é frustrante é que, além de um mapa que se vai desenhando, não há grandes indicadores sobre o que fazer neste mundo colorido com um claro convite à exploração. Há Rot para coleccionar, cristais para angariar, cofres para abrir, entre outros tesouros escondidos. Kena tem um impulso gerado pelo seu escudo (tecla L1 do DualSense), que permite encontrar e desbloquear alguns destes segredos. Contudo, é bem possível que se esqueçam desta mecânica muito cedo. Depois, vasculhando pelo menu, percebemos que o nosso progresso está associado a estas descobertas, com os Rot a aumentar funcionalidades e os cristais gastos a evoluir Kena. Quando nos apercebemos disto, se calhar já passámos imensos locais inexplorados e que podíamos ter aproveitado. Enfim.
No mesmo registo de falta de esclarecimento, está o combate. É bastante divertido, notem, primeiro só com o bastão e mais tarde com outras habilidades, inclusive um arco e flecha muito prático. Temos ataques leves, pesados, saltos e desvios, num combate melee muito dinâmico. Acontece que também aqui o jogo tarda em explicar como funcionam as coisas, especialmente usando os Rot para nos ajudar. As explicações até estão lá, no menu, mas ficamos sempre a aguardar algum tutorial e raramente é mostrado, especialmente contra bosses. Um boss gigante tem cristais amarelos que lhe tiram grandes pedaços de poder quando atingidos por setas. Só nos apercebemos disso quando lá acertamos acidentalmente.
Aliás, os combates com bosses e mini-bosses são também algo experimentais. Não há muito para explicar, na verdade, excepto que teremos de estudar o ritmo de cada um dos confrontos. É um desafio interessante até, uma vez que temos de atacar e defender de forma ligeira, ao mesmo tempo que gerimos a nossa energia e barra de vida. E onde estão os Rot para nos ajudar? Os pequenotes não são muito aventureiros, só ganham a devida coragem quando Kena mostra mais destreza em combate. Então o jogo “abre”, os companheiros passam a ter utilidade e ganhamos o embate. O jogo apenas nos explica isto uma única vez e é bem possível que saltem essa explicação nessa ocasião.
Outra área que precisava de alguma ajuda ou orientação, é a dos puzzles ambientais. Em certas zonas, é possível que tenhamos de erguer uma estátua ou movê-la para um sulco no mapa, de modo a usar o impulso e abrir uma porta. Contudo, o jogo não nos diz realmente como proceder. Uma coisa é partir do suposto que a estátua ou cristal tem de ser colocado num sítio, alguma intuição é necessária, afinal. Outra é saber que temos de pisar um emblema escondido e activar o nosso impulso para erguer uma plataforma. Acabamos por perceber a lógica e saberemos repeti-la, é certo, mas inicialmente é frustrante e dei por mim preso logo na primeira secção do jogo, exactamente porque o jogo não me explicou o que fazer.
Por fim, a última questão que me fez recordar demasiadas vezes que esta era uma pequena equipa por detrás do jogo, cuja ambição certamente encontrou limites durante a concepção das suas ideias. Barreiras invisíveis. Há anos que estas são as inimigas dos jogos mais criativos, inibindo os aventureiros de procurar atalhos ou caminhos menos óbvios. Nem sempre são óbvias, mas estão lá. Ou então, transformam-se em quedas nos precipícios quando tentamos saltar para uma secção menos acessível em baixo. O desenho dos mapas é semi-linear, com alguma abertura a explorar caminhos mas não tentem sair da esteira pré-definida. Até porque não podem. Especialmente nas secções de plataformas, não tentem abreviar caminho ou acabam a recuperar um checkpoint.
Com tudo isto somado, ainda assim, este é um jogo realmente divertido, com imensos pormenores bem concebidos e a puxar-nos para chegar ao fim. Terminando a história nas suas cerca de oito horas, porém, não fica muito incentivo para o redescobrir, mesmo que queiramos estendê-la procurando todos os coleccionáveis e melhorias para Kena. Aliado ao que nos foi dado a ver antecedendo o lançamento, é inevitável que fiquemos a pedir mais, especialmente pelas suas imensas referências e inspirações que não enganam ninguém. Ainda bem que a produção não se deixou levar pelas expectativas, não iria resultar muito bem se tentasse ir além das suas capacidades.
Veredicto
Sinceramente, esperei mais de Kena: Bridge of Spirits. O jogo é visualmente deslumbrante, com alguns momentos visualmente fantásticos que tiram bom proveito do hardware da PlayStation 5 (versão analisada). Também o combate e as mecânicas de jogo são divertidas, mesmo que o jogo não aposte muito em explicações. Infelizmente, a sua dimensão foi mais modesta que o previsto, fruto, talvez, de uma expectativa algo elevada do nosso lado. Notam-se alguns pormenores de conceito a precisar de mais trabalho e outras questões de pormenor. Não deixa de ser um impressionante resultado para a pequena Ember Lab, embora lhe falte “aquela” substância. Quem sabe, pode ser apenas o primeiro de uma série.
- ProdutoraEmber Lab
- EditoraEmber Lab
- Lançamento21 de Setembro 2021
- PlataformasPC, PS4, PS5
- GéneroAventura
Ainda não tem uma classificação por estamos a rever o nosso esquema de pontuações em análises mais antigas.
Mais sobre a nossa pontuação- Alguns momentos deslumbrantes visualmente
- Cenas intermédias estilo filme de animação
- Integração na PS5 com o comando DualSense
- Alguma falta de orientação do jogador
- "Paredes invisíveis"
Esta análise foi realizada com uma cópia de análise cedida pelo estúdio de produção e/ou representante nacional de relações públicas.