Análise – Kunitsu-Gami: Path of the Goddess
Na procura por algo verdadeiramente único, acabamos muitas vezes desapontados. De vez em quando, porém, surge um jogo que realmente nos surpreende por ser tão diferente de tudo o que conhecemos. Eis Kunitsu-Gami: Path of the Goddess.
A palavra de ordem quando começamos a jogar Kunitsu-Gami é: estranheza. Tudo é estranho neste jogo, desde o enredo ao visual e até na jogabilidade. Este é um jogo sem freio criativo, onde a Capcom deu luz verde à produção para irem além do padrão, sem receios de quebrar as regras do convencional. O maior desafio que este jogo apresenta é cativar-nos além de possíveis preconceitos, fazer-nos continuar depois dos primeiros minutos, em especial se não entendermos muito do que se passa no ecrã. Mas, lá encontramos o ritmo, o fio condutor genial que esconde, para nos mantermos interessados e desafiar a nossa própria psique para fazer sentido do que se passa no ecrã. Se o fizermos, descobrimos um jogo que mistura vários géneros de forma hábil, contendo uma fórmula que poderá fazer-vos apaixonar.
A divisão responsável por este jogo, não é propriamente uma desconhecida do bizarro. Afinal, a Capcom Development Division 1 é também a mesma que nos trouxe Devil May Cry. Todavia, as primeiras imagens promocionais deixaram bem claro que esta produção estava a apostar em algo mesmo diferente dessa série clássica, algo mais “over-the-top”, descolando-se do “mainstream” e envolvendo a mitologia e o folklore Japonês, uma cultura já tão estranha para nós, ocidentais. Contudo, uma das coisas que não ficaram bem claras nos vídeos que antecederam o lançamento, era realmente o tipo de jogabilidade que teríamos aqui. E ainda bem que assim foi, porque a descoberta foi ainda mais agradável.
Confesso que esperava algo na onda do “hack-and-slash” tradicional, apenas “vestido” com outra “roupa”, contendo os mesmíssimos pontos que já estamos tão habituados. Esperava também uma história centrada no já batido lore de algum herói mitológico transformado em guerreiro com poderes sobrenaturais, em busca de algum tipo de salvação. Mas, não. Kunitsu-Gami é um óptimo exemplo de como se consegue subverter as expectativas de forma positiva, quebrando vários desses tais preconceitos e mostrando ao mundo que, sim, é mesmo possível criar novos IPs sem ser verdadeiramente original mas, ao mesmo tempo, sendo realmente original. Como assim? Já explico.
A história leva-nos a conhecer Soh, um guerreiro sobrenatural cuja missão é proteger Yoshiro, uma deusa dançarina com poderes celestiais. Esta graciosa deusa viu o seu altar no topo do monte Kafuku assaltado por uma força maligna e grostesca, valendo-lhe Soh para conseguir escapar. Esta força desconhecida, não só desafia a deusa, como está a deturpar o ambiente, a possuir os aldeões e a invadir os lendários arcos torii para os transformar em portais de onde saem seres grotescos. Soh tem de garantir que Yoshiro percorre cada um destes arcos torii, limpando-os da sua perversão e restaurando o equilíbrio no reino, ajudando Yoshiro na sua jornada por criar o caminho da deusa ou… Path of the Goddess.
A premissa parece bastante simples, numa história contada com muito pouca explicação, aludindo bastante para a nossa intuição e sentido de orientação e dever. Contudo, ao fim de uns minutos de acção a desancar monstros e seres sobrenaturais, somos gradualmente apresentados às mecânicas de jogo de forma sequencial e pausada, suportado com vários menus elaborados e explicações sucintas. De facto, se houver algo que poderão criticar logo de início é que o jogo não se perde muito a fazer sentido das coisas, apenas as mostra uma só vez, explica de forma muito sucinta o que se pretende e segue em frente. Não perceberam? Vão ao menu recordar. A mão, essa, a produção não vos dá.
Não, este não é, de todo, um jogo convencional. Cedo percebemos que existe uma componente de estratégia, a fazer lembrar o género de Conquista com uma espécie de “Tower Defense”, misturados com combates massivos em diferentes fases de jogo, entre dia e noite. Durante o dia, andaremos pelos sectores a limpá-los da corrupção, libertando aldeões e purgando os altares malignos. Isso dá-nos uma quantidade de esferas de poder que depois podemos usar para atribuir papéis aos aldeões, dando-lhes poderes e posicionando-os estrategicamente. Isto porque, uma vez limpa a corrupção, à noite os monstros regressam.
Directamente do arco torii, surge toda a sorte de seres grotescos que querem destruir Soh e Yoshiro pelo que estão a tentar fazer. A posição dos aldeões é essencial para garantir que não passam por nós ou tentam rodear-nos para chegar a Yoshiro. Além desta defesa, tamos de atacar também com precisão. Temos uma série de movimentos e combos disponíveis para isso, tornando as batalhas intensas e muito vistosas. Por cada monstro destruído, recebemos cristais que terão várias funções mas cuja principal serventia é permitir cravar o tal caminho para Yoshiro avançar até ao arco torii e finalmente purgá-lo do tal portal maligno.
Esta é uma fórmula permanente do jogo. Nova área, limpar a corrupção, atribuir posições aos aldeões (que podem depois mudar durante o combate), esperar pela noite, combater, fazer Yoshiro avançar, purgar o torii, fazer upgrades e prosseguir para a próxima área para repetir tudo novamente. Apenas lendo isto, poderão dizer que o jogo é repetitivo. Não escondo que, de facto, há alguma repetição na fórmula ao fim de umas horas mas não da forma como estarão a pensar. Inicialmente, apenas teremos um novo tipo de aldeão por cada zona e parece que é só mesmo isso que teremos. Um novo lenhador, um novo arqueiro, um novo xamã, etc. Mas, o Kunitsu-Gami está aqui para surpreender.
Subitamente, as próprias zonas de combate assumem protagonismo. Não só os desenhos das zonas de acção vão sendo cada vez mais complexos, com mais caminhos para lidar e mais zonas para posicionar defesas, podem até haver vários torii para alcançar. Também os próprios inimigos começam a surgir em maior quantidade ou variedade, tendo também unidades especiais e mais complicadas. Vão-se tornando igualmente mais astutos para quebrar as nossas defesas e ataques, obrigando a mudar de estratégia. Então, entendemos que a tal repetição é apenas um engodo, servindo de base para uma acção sempre em mutação.
Falando propriamente do combate com Soh, há um constante desafio para atacarmos de forma consciente com combos e ataques pontuais, em vez de avançar loucamente para o meio da confusão. Isto, porque os inimigos surgem muitas vezes em quantidade e torna-se impossível focar-nos num só de cada vez. Contudo, lá mais para a frente começam a surgir os bosses que nos obrigam a disferir golpes mais precisos e mais fortes, tendo de jogar com um ritmo mais consciente. Alguns inimigos começam a drenar energia de Yoshiro, por exemplo, por isso “não durmam no serviço”. O que é mais interessante é que as estratégias dos inimigos também evoluem e há movimentos de distracção para nos ocupar enquanto outro inimigo avança sorrateiramente noutro lado. Genial.
Mas, não pensem que o segredo para cada nível mais difícil é apenas dominar os golpes mais letais e vistosos de Soh. Na verdade, a pura estratégia é que ganha níveis, com posicionamento inteligente dos aldeões para complementar o nosso próprio ataque. Não vou dar aqui nenhuma estratégia infalível mas fica claro que arqueiros em pontos elevados e curandeiros perto de Yoshiro são importantes, movendo ainda alguns elementos de barreira em caminhos laterais para conter avanços. Mas, até esta convenção pode sofrer alterações em cada combate. Também é importante fazer Yoshiro avançar de forma consciente, longe da acção mas cada vez mais próxima do torii. Não basta sermos bons com a espada, é preciso pensar um pouco e evoluir a estratégia.
Uma vez conquistado um novo sector, na verdade estamos a libertar uma aldeia da influência maligna. O que significa que, depois do combate, é também preciso ajudar os aldeões a reconstruí-la. Esta mecânica está intimamente ligada à evolução de Soh, já que é assim que recebemos itens de upgrade para melhorar a personagem. Embora seja algo um pouco confuso ao início, contendo várias opções de upgrade com várias áreas de melhoria e tarefas para os aldeões, é uma questão de lerem bem o que é pedido e que efeito terá na jogabilidade. Podem até mesmo ignorar a reconstrução da aldeia se necessitarem de ajuda na próxima. Tudo envolve um certo risco e alguma recompensa.
Esta é uma verdadeira lição de variedade para todas as produções que acham que basta criar uma fórmula básica para depois repeti-la exaustivamente durante horas de modo a tornar um jogo interessante. É discutível, obviamente, mas claramente não funciona sempre. Kunitsu-Gami mostra que, afinal, é mesmo possível que um jogo seja interessante repetindo-se, mas juntando conscientemente uns “pózinhos” adicionais ao longo de uma trama linear, tornando cada nível uma surpresa e, ao mesmo tempo, desafiando-nos gradualmente a evoluir com o jogo. A árvore de evolução de Soh, por exemplo, só surge lá mais para a frente na trama, exactamente quando achamos que começa a faltar algo para o evoluir. Inclusive a habilidade de usar arco e flecha, que modifica tanto a jogabilidade ou com novos comandos para os aldeões.
O que pode não agradar a todos os jogadores é que tudo sito leva tempo a descobrir e a entender. Como já disse, não há muitas ajudas, temos de ler tudo muito bem e perceber o que cada item e cada upgrade pode fazer para tomar uma decisão. Nem tudo é óbvio, exigindo até alguma experimentação. Há poderes e habilidades que dão uma vantagem mas também podem dar uma desvantagem algures. Isto é particularmente importante com as funcionalidades dos aldeões, já que há comandos que parecem interessantes, como “Assemble” que os comanda a juntar-se rapidamente num só local, saturando uma área com defesas mas que podem quebrar completamente a nossa estratégia inicial.
Sim, já sei do que estão à espera. Temos mesmo de falar do visual de Kunitsu-Gami. Bem, é mesmo uma questão de gosto pessoal, havendo aqui um óbvio apreço pela arte tradicional Japonesa que é preciso ter. Tive a oportunidade de jogar num PC e na Xbox Series X e confirmo que há um óbvio deslumbre proporcionado por toda a arte gerada para este jogo, com um design bastante arrojado e intrincado, envolvendo alguma dose de exagero, misturada por uns efeitos visuais de arregalar o olho, por vezes até efeitos caleidoscópicos. Notei amiúde algumas animações menos trabalhadas, umas texturas mais básicas e até uma certa simplicidade nos modelos em alguns momentos, algo que não é verdadeiramente grave e que não distrai de tudo o resto.
Tecnicamente falando, a nível gráfico, de facto, o jogo esteve sempre ao mais alto nível no PC ou na consola. Notei que a performance no PC é um pouco mais exigente, pedindo alguma optimização nas opções gráficas, em especial com áreas em que surgem muitas unidades no ecrã. A optimização na consola pareceu-me claramente melhor mas, lá está, talvez o hardware neste caso não seja tão puxado como no PC. A única questão real que tive a este nível foi com a câmara de jogo. Sendo este um jogo claramente mais estratégico, a câmara é livre e mais afastada. Embora seja óptimo para a estratégia, achei que podia ser mais “domada”, centrando-se um pouco mais nos elementos de acção, evitando melhor obstáculos.
Infelizmente, no PC também tenho de reportar que tive alguns crashes. A dada altura no acesso antecipado ao jogo, tive mesmo de me cingir a jogar na Xbox Series X porque o jogo não queria colaborar no PC. Curiosamente, os crashes parecem acontecer aleatoriamente nos menus e não durante a acção. São demasiado frequentes para ser algo relacionado com o meu hardware propriamente dito. Uma volta pelos fóruns e redes sociais parecem demonstrar que, infelizmente, é um mal geral nesta plataforma. Estou certo que a Capcom já estará a trabalhar numa correcção, afinal o jogo foi apenas ontem lançado e é normal haver um ou outro problema pendente.
Veredicto
Entre o belo e o bizarro, entre o simplista e o complexo, Kunitsu-Gami: Path of the Goddess é uma óptima surpresa da Capcom, numa altura em que já não tínhamos grande esperança de ver algo verdadeiramente novo, no meio de tantos remakes, remasters e reboots. É mesmo um óptimo jogo, cheio de descoberta e desafio, além da estranheza constante do que estamos a ver e que proporciona um belo espectáculo visual em algumas ocasiões. É uma aposta audaz da produção, usando géneros muito conhecidos, como o “hack-and-slash”, o “tower defense” ou a estratégia de conquista mas habilmente moldados de forma engenhosa, com enorme atenção ao balanço e, mais importante, à continuidade, roçando levemente na repetição para se ir construindo até ao fim. Um feito imperdível.
- ProdutoraCapcom
- EditoraCapcom
- Lançamento19 de Julho 2024
- PlataformasPC, PS5, Xbox Series X|S
- GéneroAcção, Estratégia
Óptimo, aconselhamos a apreciar ao máximo.
Mais sobre a nossa pontuação- Visual estranho mas deslumbrante
- Óptima junção de géneros de jogabilidade
- Uma evolução constante que quebra sempre a repetição
- Combates com bosses
- Crashes constantes na versão PC
- Alguma simplicidade no visual que de resto seria irrepreensível
- Alguma falta de ajuda em alguns tópicos
Esta análise foi realizada com uma cópia de análise cedida pelo estúdio de produção e/ou representante nacional de relações públicas.