Análise – Lies of P
Lies of P impressiou-me. Um projecto que surgiu praticamente do nada, numa inspiração nas aventuras de Pinóquio, transformando-as num conto de fadas sombrio. Tudo isto criado por uma equipa quase desconhecida.
A sua jogabilidade ARPG, presta homenagem aos títulos da FromSoftware, replicando inúmeros elementos dessa fórmula com um cuidado e atenção muito interessantes. O resultado final é um soulslike tradicional, mas mais “gentil”. É difícil, sem dúvida, mas não até à “medula”, tendo uma jogabilidade fenomenal, mesmo sem muitas ideias originais, sem descartar a história verdadeiramente fascinante e bem contada. Consegue ainda ser absolutamente incrível a nível técnico, incluindo uma banda sonora memorável. Tudo isto mostra um profundo cuidado que alguns estúdios, mesmo alguns mais famosos, dariam tudo para atingir.
Uma borboleta desperta o protagonista de Lies of P. Tal como no conto original de Carlo Collodi, Pinóquio é uma marioneta. Só que nesta história adaptada é indistinguível de um ser humano, excepto pelo braço esquerdo que revela a sua natureza artificial. Ao emergir da carroça abandonada onde estava deitado, percebe que a cidade de Krat está cercada por pessoas semelhantes a ele. Só que estes modelos aparentam ser menos sofisticados e, pior, parecem impulsionados por uma fúria homicida.
Entre as ruas cheias de sangue e de cadáveres, ainda existem cartazes informativos que alertam a população sobre uma terrível doença petrificante. Esta doença pode estar associada à súbita e violenta rebelião dos autómatos. Os robots foram criados pelo brilhante Geppetto, em resultado da descoberta de Ergo, uma essência misteriosa capaz de alimentar qualquer mecanismo. As origens desta essência estão envoltas em grande mistério e, inevitavelmente, escondem um terrível segredo.
Guiado por Gemini, um “grilo falante”, a nossa personagem avança por hordas de inimigos que se tornam progressivamente mais fortes e perigosos. O plano é chegar ao Hotel Krat, um castelo transformado há algum tempo num hotel, agora também o centro nervoso da cidade. Esta área é como uma espécie de hub luxuoso e fascinante, onde se cruzam os vários trajectos, tanto físicos, como os destinos das personagens que compõem a emocionante história contada pela produtora Round8.
Tendo encontrado o seu criador, porém, Pinóquio descobre o cerne da trama. As marionetas subitamente deixaram de obedecer ao Grande Pacto, ou seja, uma variante das três leis da robótica inventadas por Isaac Azimov, às quais foi adicionada uma quarta lei. Aqui, as marionetas não podem mentir. O protagonista do jogo é o único autómato a possuir essa capacidade e isso distingue-o de todos os outros. A história continuará à sua maneira, numa jornada de crescimento e transformação muito bem contada, não necessariamente mantendo muitos elementos originais.
Sim, as personagens do romance de Collodi voltam à vida em Lies of P, claramente numa versão alternativa adaptada, repleta de referências ao livro, desde o Gato e o Grilo até ao autómato Polendina, sem esquecer, claro, os charutos dourados, passando naturalmente pelo que será o nosso ponto de referência durante a aventura. Sophia, a bela dama com o toque mágico e vestido turquesa, que despertou Pinóquio para salvar a cidade da completa destruição, enfrentando não apenas as marionetas loucas e o seu poderoso rei mas também alguns humanos tresloucados.
Estes humanos pertencem a diversas facções que competem pelo território atormentado de Krat, cada uma com a esperança de poder erradicar as pragas que afligem o que era uma metrópole futurista. Em complemento aos temíveis autómatos, os humanos são uma variante dos inimigos encontrados, oferecendo uma variedade de inimigos, bosses e mini-bosses bastante distinta. O combate é, como esperado, desafiante, mas nunca senti que estivesse além das minhas capacidades, bastando entender bem a coreografia desejada entre ataque e defesa. Mas, já lá vamos.
Nos onze capítulos que compõem a campanha de Lies of P, a duração varia bastante dependendo do número de mortes e do backtracking que teremos que enfrentar. Dificilmente imagino que a passagem total do jogo, levando tudo com calma e procurando todos os segredos, seja feita numas trinta horas. Obviamente, quanto menos dominarmos o combate, mais vezes teremos de repetir secções, ora não fosse esse o apelo de um soulslike. Ainda assim, mesmo com repetições, duvido que precisem de muito mais tempo para terminar todo o enredo.
Os níveis são lineares e apresentam uma grande abundância de barreiras, por vezes invisíveis. Neste sentido, estamos perante uma interpretação da “velha guarda” da fórmula criada pela FromSoftware. Onde o jogo se distingue bem, é no design das áreas de jogo, francamente mais verticais que os Souls originais. Muitas vezes, vamos deambular pelos telhados da cidade, com a presença de missões opcionais que envolvem encontrar e entregar objetos em locais improváveis, explorando bem este design.
A exploração é pontuada pelos Stargazers, dispositivos que podem ser activados para restaurar a saúde, dar cápsulas de cura e para afiar a espada, bem como para teleportar livremente para o Hotel Krat. Este hotel, já agora, é o único lugar durante quase toda a campanha onde podemos aceder a power-ups, bem como a diversos vendedores. É preciso apenas notar que, uma vez activados, os Stargazers restauram todos os inimigos que derrotámos, com excepção dos chefes e mini-chefes. Um “must” neste género, que nos faz pensar estrategicamente.
Se tivermos uma quantidade adequada de Ergo (que funciona como moeda no jogo e é obtida ao derrotar adversários ou recolher cristais), vale a pena aproveitar os Stargazers para regressar ao hotel e comprar algumas melhorias, adquirir consumíveis e usar materiais específicos para melhorar as armas que fazem parte do arsenal, bem como adquirir acessórios que influenciam as estatísticas de resistência e capacidade ofensiva do protagonista. A “troca” é que teremos de voltar a enfrentar os inimigos que já tínhamos derrotado.
Passar ocasionalmente pelas salas do luxuoso hotel é, sem dúvida, uma solução um tanto monótona e repetitiva. No entanto, a produtora também tentou explorar essa mecânica para avançar na narrativa do jogo. Isso acontecer através da interação com as pessoas que se refugiaram no hotel e que nos levarão, em vários casos, a tomar decisões difíceis, que resultarão numa espiral de eventos que culminarão num dos três finais diferentes disponíveis.
Sempre com vista à exploração, não podem faltar escadas, pontes e portões que podem ser abertos e que conectam uma secção do mapa a outras. Este é outro elemento “emprestado” do género, permitindo assim abrir atalhos convenientes que ajudarão a avançar ou recuar pelos níveis, sem ter de forçosamente optar pelos caminhos originais. Estes atalhos são também preciosos para nos levar directamente à fase final de cada capítulo. Apenas devem notar que cada final de capítulo envolve uma luta contra um boss sempre mais desafiante.
Não é por acaso que no início mencionei que Lies of P é “soulslike gentil”, ao contrário de outros títulos, incluindo os da FromSoftware, a estrutura não serve especificamente para nos torturar. Os checkpoints são colocados de forma a minimizar a viagem irritante até ao boss em questão, não nos obrigando a fazer longas distâncias com todos os inimigos restaurados. São colocados de forma mais consciente, de forma a minimizar um pouco a dificuldade, dando-nos pontos de partida quase sempre justos para que tentemos de novo.
Na minha passagem pelo jogo, nunca achei que o jogo me punia impiedosamente. Aliás, recomeçar o encontro relativamente perto do inimigo permite repensar a abordagem, talvez por apostar em estratégias diferentes. Além disso, em caso de derrota, encontraremos o nosso equipamento e reserva de Ergo ali perto, sem o risco de a perdermos para sempre. Pode parecer um facilitismo e acredito que muitos desejariam a mecânica original mas eu achei uma lógica simpática.
O Legion Arm é uma das funcionalidades distintas de Lies of P. Mas, não é original. É óbvio que nos recorda Sekiro: Shadows Die Twice, até porque há outras referências desse jogo noutros lados. Como mencionámos, o braço esquerdo do protagonista é visivelmente “mecânico” e é possível substituí-lo por diferentes modelos ou melhorar cada um. É bastante útil contra adversários menos poderosos ou mais sensíveis mas o seu potencial é atingido durante batalhas contra bosses, tendo apenas de lidar com algumas limitações de uso.
O braço de aço inicial desfere um golpe poderoso mas depois teremos opções bem mais intrigantes. Puppet String lança um gancho para agarrar e/ou ferir inimigos, Fulminis emite um ataque eléctrico, Flamberga funciona como um lança-chamas, Deus Ex Machina planta minas de proximidade no solo, Pandemonium espalha ácido corrosivo, Aegis é como um escudo que explode no impacto e Hawkeyes que permite disparar foguetes. Como devem calcular, o uso de cada variante é uma opção estratégica, dependendo do vosso estilo de jogo, mais ofensivo ou mais defensivo.
Durante as batalhas, teremos que prestar atenção a várias coisas: o nosso equipamento em termos de consumíveis, por exemplo, as cápsulas para restaurar a saúde, até ao estado da lâmina (que tem a sua própria resistência e deve ser restaurada com a pedra de amolar montada no cotovelo esquerdo), passando ainda pelas várias poções e objetos para atirar. Também os vários acessórios podem tornar a personagem mais ou menos resistente, mais ou menos rápida mas têm um peso considerável.
Como é tradição, se um certo limite de carga for ultrapassado, o protagonista ficará fatalmente lento, não sendo depois capaz de correr à velocidade máxima ou sequer de realizar esquivas. Ou seja, há que manter um equilíbrio entre movimento e destreza com o peso disponível, especialmente durante os combates contra bosses. É um incontornável compromisso constante, fazendo-nos abordar cada combate com uma prévia gestão consciente de arsenal e habilidades.
Obviamente, as armas também são importantes em Lies of P. Cada uma é distinta mas o que realmente as torna únicas é que são modulares. Esta é provavelmente a mecânica que mais gostei neste título, oferecendo bastante neste campo estratégico. Durante a campanha, teremos a oportunidade de recolher ou comprar uma grande variedade de armas diferentes, desde espadas, machados e até lanças, todas caracterizadas por uma parte central, geralmente a lâmina, e o cabo.
Posteriormente, no Hotel Krat, poderemos combinar estas várias lâminas e diversos cabos para obter resultados híbridos surpreendentes e, em muitos casos, realmente espectaculares. Combinar uma lâmina de serra gigante a um cabo de um bastão de polícia, dá-nos uma arma que é empunhada como uma clava mas tem um alcance, potência e velocidade surpreendentes. Foi apenas uma das várias combinações que testei e, acreditem, com alguma experimentação encontrarão ainda melhores combinações que esta.
Outra constante nestes jogos soulslike é, obviamente, uma caracterização de inimigos, com especial atenção para os bosses e mini-bosses. Neste sentido, Lies of P é muito bem composto, uma vez que ostenta um invejável número de inimigos variados e bem diferenciados. E não é que vejamos muitas repetições. A oferta de inimigos muda também dependendo do cenário, trazendo nas fases finais alguns híbridos verdadeiramente monstruosos. A repetição é mesmo assim, evidente, mas não tão frequente que achasse que se tornava enfadonha.
Existe, aliás, uma grande coerência estilística na colocação dos adversários e no seu design, começando pelos marionetes-mordomos que povoam as ruas de Krat no primeiro capítulo, movendo-se como marionetes de corda, com inevitável limitação de inteligência. Depois, vamos conhecer alguns autómatos da polícia, de maior ou menor dimensão, com espadas ou bastões. E ainda não consegui ultrapassar uns palhaços aterrorizantes e uns soldados blindados que me deram mais trabalho.
Mais lá para a frente, encontraremos uma variedade igualmente ampla de mutantes, que por vezes se assemelham a clickers vistos em The Last of Us (outra óbvia inspiração), correndo furiosamente para nos atacar ou avançam lentamente enquanto líquidos repulsivos escorrem… bleah! Acrescentam-se a essas figuras, uma generosa oferta de mini-bosses, alguns dos quais são verdadeiramente difíceis (anotem este nome: Walker of Illusions), geralmente pertencentes às facções humanas.
Por fim, os verdadeiros “chefes”: o encontro com esses adversários poderosos, quase sempre gigantescos, é prontamente antecipado por uma sequência particularmente evocativa. Também aqui as referências às obras originais de Hidetaka Miyazaki são bastante evidentes. E tal como nesses jogos, também os padrões de ataque são variados e devem ser muito bem memorizados para ter uma chance de vitória. Como já estão à espera, quanto mais avançam na história, mais complicados também serão.
Como já dei a entender, a magnífica direcção artística é que faz Lies of P brilhar. Este design clássico, polvilhado com elementos steampunk, confere ao jogo uma personalidade, que só não é mais única por causa das várias chamadas às já mencionadas inspirações. Mesmo assim, não o posso classificar como um plágio “com outra skin”. Há um design próprio de quase tudo, claramente a buscar elementos culturais e visuais Europeus habilmente influenciados por outros da cultura Japonesa.
O Round8 Studio utilizou o Unreal Engine 4 de forma exímia, preenchendo os cenários com imensos elementos, uma iluminação muito bem pensada, com muitos reflexos, principalmente nos pisos de mármore e superfícies brilhantes dos maravilhosos interiores dos edifícios do século XIX. Claro, que esta qualidade é oscilante ao longo dos capítulos, tendo os exteriores bem menos detalhes em algumas secções. Ainda assim, há muito para apreciar, especialmente com as diferentes meteorologias e horas do dia.
Também notei que houve muito trabalho nas animações. Basta considerar os muitos movimentos disponíveis para as manobras ofensivas do protagonista, que dependendo das combinações, varia também o “flow” da interacção. Como detalhe, pode balançar as armas de diferentes maneiras, por exemplo. Também os próprios inimigos possuem gestos e movimentos variados, que reflectem a sua natureza. Onde esta variação se nota mais é nos bosses, com todos os seus padrões e aquela estética perturbadora.
Lies of P está equipado com três modos gráficos diferentes na PS5 e Xbox Series X. A diferença entre os modos tem a ver com a sua resolução, variando entre um upscale de 1440p para 4K a 30 fps ou um upscale de 1080p para 1440p a 60 fps. Enquanto que um aposta mais na qualidade visual, de vez em quando falha em nos dar uma sensação de fluidez, especialmente em secções mais caóticas. Para mim, o compromisso de performance foi claramente mais importante, com uma boa optimização na plataforma onde testei, a Xbox Series X.
No que toca à sonoridade, apreciei bastante como a banda-sonora e os sons gerais afectam positivamente esta atmosfera, por vezes tão tensa. É uma sonoridade ideal para o tipo de história que a produtora se propôs contar, e é enriquecida com diálogos bem interpretados pelos actores do casting. Entre os colecionáveis, existem também discos de vinil que podem ser ouvidos no Hotel Krat ao activar um gira-discos que nos fará companhia com as músicas selecionadas durante o tempo que desejarmos.
Veredicto
Repito, Lies of P é uma surpresa inesperada, um golpe de genialidade a nível artístico e de jogabilidade que, de facto, não previa. Está claramente preso nesta “prisão de ouro” que é género soulslike, trazendo pouco de realmente novo. Contudo, o Round8 Studio trouxe-nos um jogo que honra muito bem os clássicos da FromSoftware mas apostando num design, optimização e fluidez muito própria, criando uma óptima experiência neste género.
- ProdutoraRound8 Studio
- EditoraNeowiz Games
- Lançamento19 de Setembro 2023
- PlataformasPC, PS4, PS5, Xbox One, Xbox Series X|S
- GéneroAcção, Role Playing Game
Equilibrado e com boas ideias, os seus erros não o impedem de brilhar.
Mais sobre a nossa pontuação- Sector artístico extraordinário
- Um soulslike com todo o mérito
- Campanha robusta, emocionante, desafiadora
- Nunca foi realmente cruel
- Mecânicas já vistas noutros lados, sem inovar
- Alguns cenários são impressionantes, outros apenas discretos
- Linearidade provocada por muitas barreiras
Esta análise foi realizada com uma cópia adquirida pela redacção.