Análise: Life is Strange

Quase um ano depois da estreia do primeiro episódio, Life is Strange chega finalmente em formato físico numa compilação de toda a série e alguns extras. É, então, finalmente a altura de analisarmos a história de Max e a sua estranha vida, agora com os cinco episódios seguidos.

Não posso deixar de mencionar que este jogo me incomodou um pouco. Aqui está um homem adulto a experimentar alguns dias da vida de uma adolescente. É inevitável não termos um sentimento de voyeurismo involuntário. Os primeiros minutos deste Life is Strange, porém, deixaram bem claro que esta não se trata de uma simples aventura pelos complexos mundos de “boysbands”, paixonetas, SMS, problemas parentais ou outras questões mais ou menos populares na vida de uma rapariga de 18 anos. Tudo isso está lá, mas é subtil e quase assessório, servindo de contorno para um enredo sólido e bem mais adulto. Se isto não chegar, há um grande mistério e poderes sobrenaturais à mistura para desviar a atenção.

Life is Strange conta uma semana na estranha vida de Maxine Caulfield, estudante numa Academia na cidade fictícia de Arcadia Bay no Oregon, EUA. Acontece que Max sofre uma visão catastrófica de uma tempestade gigante e… acorda subitamente na sala de aula. Tudo parece não passar de um sonho. No entanto, ao fazer o resto do seu dia-a-dia, numa situação extrema de perigo, Max descobre um estranho poder de regressar no tempo e alterar eventos. Entre o medo desta sua faceta se tornar perigosa e o desejo de a explorar, Max passa a usar o seu poder em pequenas e grandes ocasiões, mudando a sua vida e a do próximo. Pelo meio, somos lentamente introduzidos em alguns dramas pessoais e um desaparecimento em que podemos (ou não) intervir.

De facto, o enredo geral e todas as tramas em seu redor são o melhor que este jogo oferece. Não quero, de modo algum, contar o que se passa realmente em jogo, porque o reunir de factos, os pequenos desenlaces e diversas interacções que irão acontecer são muito importantes para o desenrolar da história. Mesmo o uso do poder de Max para regressar no tempo tem as suas consequências. Este é um jogo em que as escolhas do jogador possuem reverberação, sobretudo lá mais para a frente na história. Por exemplo, correr diálogos, falhar e regressar no tempo já sabendo a resposta certa, ou tentar salvar alguém de uma situação, falhar e regressar no tempo já sabendo o que fazer. Regra geral, jogamos com esta dinâmica de tentativa/erro. Nos tais diálogos há até respostas ou opções de diálogo que só surgem depois de sabermos um outro determinado pormenor e outra acção indirecta.

Ao nível da jogabilidade, além de podermos controlar por onde Max deambula, também podemos observar e interagir com diversos objectos ou personagens. O objectivo é conhecer as pessoas que nos rodeiam e interagir com elas, cimentando ou destruindo relações. As decisões possuem sempre consequências e diferenças na reacção de pessoas ou desenrolar de eventos. Muitas escolhas envolvem a personalidade de Max (e a nossa). O que fazer com um super-poder misterioso que nos permite retroceder no tempo? Dava imenso jeito em tantas situações no passado. Max tem essa capacidade e pudemos evitar ou desencadear diversos momentos, assim como antecipar outros eventos e até “adivinhar” respostas. Mesmo que, mais à frente, Max descubra que há um efeito secundário nefasto deste seu poder.

Além da tal catástrofe iminente que já mencionei, há outros eventos misteriosos que precisam ser investigados. Curiosamente, todos acabam relacionados, mesmo que indirectamente. Isto obriga-nos a estar com constante atenção. Infelizmente, muitas das tarefas em que Max usa os seus poderes são incrivelmente banais, algumas desnecessárias (como procurar garrafas para fazer tiro ao alvo, por exemplo). Também há uma linearidade inevitável, com situações que em não podemos mesmo controlar os eventos, sobretudo lá mais para o fim do enredo. Felizmente, pelo meio temos importantes e críticas situações que temos de resolver o que fazer. E o melhor é que podemos escolher cada muitas das opções e voltar atrás se não nos agradarem. No entanto, não esperem por soluções perfeitas.

Se tudo isto vos faz lembrar o jogos da Telltale Games (The Walking Dead, Game of Thrones, etc), não é por mero acaso. Não vou dizer que é um clone desses títulos, porque seria injusto. O tema, por exemplo, é bem mais terreno e menos fantasioso. No entanto, as mecânicas, a divisão em capítulos e as escolhas e repercussões, senão são iguais, são pelo menos semelhantes. Apenas a capacidade de regressar no tempo é realmente original e confere uma personalidade própria a este Life is Strange. E notem que as semelhanças com os jogos da Telltale não são um factor negativo. Pelo contrário, acho que me fizeram jogar com mais interesse porque, não só gosto do tipo de jogo, como as mecânicas e lógicas do género estão aqui muito bem formuladas. Isto aliado à narrativa realmente muito boa, tornam-se numa excelente experiência.

A embrulhar esse enredo e jogabilidade tão bons, está uma arte de jogo e ambiente fantásticos. Assumidamente de estilo banda-desenhada (cell-shading), acompanhado com alguns elementos semi-realistas e com efeitos visuais e animações com qualidade, é uma excelente experiência visual, cheia de detalhes. Não só a produtora Dontnod Entertainment (a mesma do aclamado Remember Me) soube captar o dia a dia de uma adolescente (até mesmo com as inúmeras cabeças “coladas” aos telemóveis e tablets), como conseguiu criar uma atmosfera digna das melhores séries televisivas. Nota-se o imenso interesse de recriar uma típica vida escolar Norte-Americana, com um design credível, sobretudo na pequena cidade fictícia.

O simples interface composto por linhas e contornos em jeito de esboço, a constante menção do mundo da fotografia (curso e paixão de Max), o típico diário de adolescente com informações e fotografias pertinentes do enredo, a banda sonora eclética e sóbria, são pontos fortes que demonstram bom gosto e interesse em proporcionar a atmosfera certa. O casting de vozes é incrivelmente competente, com imenso interesse em criar nuances de sentimentos, sobretudo nas personagens principais. Só tenho pena que as expressões faciais e sincronismo de lábios sejam tão desajeitado. Aí a Dontnod teria um pouco para aprender com a Telltale.

Veredicto

É, ao mesmo tempo, um conto de uma adolescente e a sua luta para crescer, um thriller psicológico e misterioso, uma história de investigação, uma abordagem a um tema complexo da viajar no tempo e até uma simples história de amizade, tudo embrulhado num jogo lindíssimo e cheio de pormenores para os mais atentos. Tem algumas lacunas que, se fossem trabalhadas, poderiam conferir ainda mais qualidade visual ao jogo, como as expressões faciais ou sincronismo de lábios, tão importantes nas inúmeras interacções com personagens. Também era bom que algumas tarefas fossem omitidas ou simplesmente aprimoradas para não serem tão aborrecidas. No entanto, o enredo sólido, o ambiente geral e a inovação da interacção com a regressão no tempo, fazem deste jogo único. E agora até já o podem adquirir com todos os episódios em conjunto, não precisando de esperar pelos seus lançamentos individuais.