Análise – Sand Land
Akira Toriyama partiu, mas deixou-nos o seu imaginário. Quando nos lembramos deste prolífico autor, recordamos logo Dragon Ball. Há, contudo, uma outra obra sua menos conhecida, agora imortalizada em videojogo: Sand Land.
Em 2000, Toriyama criou uma história inédita para a Weekly Shonen Jump, uma revista que ajudou a lançar os títulos mais populares como Naruto, One Piece e, claro, Dragon Ball. A sua história inédita contava as aventuras de um jovem demónio e um idoso xerife num mundo desértico conhecido por Sand Land. Exactamente vinte e quatro anos depois, a Bandai Namco decidiu relançar esta franquia, primeiro na forma de um filme, depois com uma série animada, para a plataforma de streaming Disney+. Ao mesmo tempo, também produziu um jogo desenvolvido pela ILCA (One Piece: Odyssey) cuja tarefa era reproduzir fielmente os eventos e personagens, enriquecendo o manga original com novas ideias. Fui explorar essas terras desertas a bordo de um dos pequenos tanques que Toriyama adorava desenhar para esta análise.
Apesar de ter muitas características em comum com Dragon Ball, como a tecnologia das cápsulas e até mesmo o design de algumas personagens, Sand Land apresenta-se como um cenário novo. Este é um mundo devastado por guerras e seca, governado por um rei e um general implacável. Um dia, o xerife idoso Rao visita a Aldeia dos Demónios com um pedido: que um destes seres poderosos o acompanhe às áreas mais remotas do reino, em busca de uma fonte lendária de água, que poderia resolver os problemas das muitas pessoas incapazes de subsistir. É que este é um recurso que o governo parece possuir em abundância, mas só o partilha com um preço elevado.
Quem responde ao apelo é o jovem príncipe Beelzebub. Este decide aceitar a missão e leva consigo o velho mas astuto Ladrão como companheiro, começando assim uma aventura emocionante. Esta trama claramente invoca os primeiros capítulos da já mencionada série Dragon Ball. No entanto, é quando os bandidos desactivam o jipe de Rao e os protagonistas são forçados a roubar um tanque do exército, que a estrutura visual e narrativa de Sand Land realmente adquire as suas características específicas. E é impossível para os fãs não esboçarem um sorriso quando tudo se “encaixa” na visão do autor.
Como já disse lá em cima, Toriyama adorava desenhar veículos, por vezes rocambolescos, mas sempre com um toque único e imediatamente reconhecível. Como é sempre esperado neste tipo de adaptações (mas nem sempre conseguido), o jogo presta uma homenagem apaixonada ao falecido autor, contando a história de uma viagem em que os protagonistas enfrentam outros veículos e conseguem, sempre a bordo, superar os obstáculos ao longo do caminho. E não ficaremos só por um destes veículos. Além do já mencionado tanque, também teremos um jipe e até um poderoso mech.
No entanto, o tal enriquecimento que este jogo pretendia introduzir, leva a algumas “invenções” na história. Há uma personagem apresentada mais tarde, a engenhosa e misteriosa Ann, visivelmente inspirada em “Bulma” de Dragon Ball. Ann é a chave para uma expansão substancial da história num cenário diferente, a Forest Land, que teremos a oportunidade de explorar na segunda metade da campanha. Entendo o intuito da “invenção” para dar diversidade à acção, embora os puristas possam achar um tanto fora de contexto.
Ainda assim, as alterações feitas à trama original não parecem tão forçadas como esperava. Afinal de contas, o próprio Toriyama participou nas decisões e algumas medidas têm o mérito de dar mais significado a certas histórias secundárias. No final, o enredo em si é muito agradável e esconde significados nada triviais no confronto contínuo entre homens e demónios, apoiado por diálogos decentemente trabalhados em inglês ou japonês. Só uma nota, as legendas não podem ser desactivadas neste momento, por qualquer motivo.
A estrutura de Sand Land é basicamente a de um mapa aberto à exploração, que inicialmente permite explorar a totalidade do reino desértico com o mesmo nome. Mais lá para a frente, também poderemos aceder à tal Forest Land, sendo este um cenário ligeiramente menor mas caracterizado por panoramas mais variados e animados. Em toda a extensão do jogo, podemos deslocar-nos utilizando qualquer um dos veículos fornecidos, embora no início sejamos obrigados a fazer viagens longas a bordo do tanque lento. O ritmo muda, felizmente, permitindo uma passada muito mais rápida logo que tenhamos mais opções de deslocação. O que é óptimo porque, acreditem, viajar inicialmente pode ser mesmo aborrecido.
Mas, além do jipe, ou talvez a mota, a fase de exploração torna-se também mais também muito mais rápida na segunda metade do jogo, muito por causa da presença de um número muito grande de locais para descobrir que, uma vez visitados, permitem viagens rápidas de um ponto a outro sem custos. Todavia, quando passamos a optar pelo fast-travel, este torna-se quase num “vício”, sendo uma solução que acabará por ser explorada em demasia nas fases avançadas da campanha, diminuindo bastante o intuito da campanha, que é a própria viagem em si. Mas, não é que sentisse grande falta das ditas viagens, até porque, em grande parte, achei que o cenário tinha pouco conteúdo interessante.
Uma vez que se trata de um vasto deserto representado, até faz sentido que o reino de Sand Land não ofereça nada particularmente emocionante. Mas, isto não quer dizer que seja mesmo desprovido de perigos. Enquanto vagueiam, vão deparar-se com bandidos, soldados e enormes bestas para abater a fim de recolher o inevitável saque. Este saque é depois dividido numa enorme quantidade de materiais diferentes que podemos usar para criar novos veículos ou melhorar os que já temos. Existem também alguns locais onde se localizam uns quantos povoados, incluindo o hub central. Mas, não esperem grande actividade por aqui, já que se limitam a alojar personagens a oferecer missões e uns poucos comerciantes.
Felizmente, algumas áreas interiores são bem mais interessantes. Tornam-se gradualmente em autênticos labirintos, cada vez maiores e mais complexos. Nunca nos falta um indicador com a direcção certa, numa lógica que explora as características dos diferentes veículos de forma semelhante a um Metroidvania. Ou seja, usamos certas funcionalidades (o canhão do tanque, a capacidade de navegação do hovercraft, etc.) para poder avançar nos objectivos ou obter novas capacidades. Confesso que este conceito revelou-se irritante em alguns momentos, devido a uma exigencia algo exagerada, pedindo materiais específicos para a construção de certas coisas. Um exemplo, antes de poder entrar em Forest Land, tive de passar pelo menos uma hora à procura dos recursos necessários para poder montar um veículo específico. Sim, uma hora a procurar coisas.
De resto, no decorrer da campanha não encontrei quaisquer problemas que tornem este jogo particularmente mau. Esta abordagem de um mundo aberto à exploração permite alguma liberdade, por escolher quais missões queremos enfrentar e quais recompensas queremos mesmo apostar. É também uma forma engenhosa de possivelmente prolongar a duração do jogo. Não é que este seja um título curto, já que facilmente excede as 20 horas, mesmo só focando nos eventos principais e deixando para trás várias tarefas opcionais. Ainda assim, consigo antever momentos em que a curiosidade ou a simples ambição de ver “tudo” nos leva a deambular por locais desconhecidos.
De facto, Sand Land oscila constantemente entre aspectos positivos e negativos, tentando enfatizar ao máximo os seus maiores trunfos (arte, tom, etc), ao mesmo tempo que tenta também esconder os aspectos menos positivos tanto quanto possa… embora não consiga mesmo. Digamos que as fases iniciais da campanha não dão uma boa introdução ao jogo, no sentido em que mostram sem piedade os problemas relacionados com o combate e as secções de plataformas a pé. Estas, já agora, são estragadas por uma inconsistência substancial na forma como Beelzebub se move dentro do cenário e interage com ele. Não gostei mesmo das animações e algumas soluções técnicas que a produção usou.
Tendo em conta o uso de recursos já vistos várias vezes noutros títulos da Bandai Namco, nota-se que a experiência está estruturalmente ligada à lógica e conceitos das gerações anteriores de videojogos. Ou seja, a jogabilidade é algo antiquada. Isso é particularmente demonstrado nas muitas lógicas datadas apresentadas durante a campanha. Felizmente, à medida que avançamos, muitos desses elementos melhoram, como se a produção também evoluísse durante a sua concepção. Até mesmo o combate corpo-a-corpo evolui, graças ao desbloqueio de novas habilidades. Infelizmente, este tipo de interacção nunca atinge um nível realmente aceitável, já que há sempre enormes problemas entre a perspectiva da câmara e os alvos em fazemos “lock”.
Assim, podemos dizer que Sand Land se expressa de forma mais convincente apenas quando estamos a bordo dos veículos. Contudo, mesmo aqui existem algumas inconsistências que não consigo ultrapassar. Durante os combates, o tanque domina, dado que pode fazer mira e disparar independentemente da direcção do movimento. O tal mech que podem desbloquear mais perto do final é igualmente divertido com seus socos avulsos. Agora, quando é altura de enfrentar inimigos numa mota ou num carro, o combate torna-se um tanto frustrante. Quase diria que a produção adicionou estes veículos à pressa ou talvez a pensar que os jogadores simplesmente evitariam o combate neles.
Uma boa parte da minha frustração veio do estranho layout de controlo que, na minha opinião, não é muito bem pensado (analógico para mover os veículos, os gatilhos para mirar e disparar). É mais um elemento desajustado e um tanto antiquado. Também achei antiquadas as mecânicas de “virar e disparar, disparar e virar” antiquadas e que, na ausência de rotinas comportamentais minimamente evoluídas desde os inimigos básicos e os mais avançados, se tornam só mesmo aborrecidas. Mesmo assim, achei as batalhas com os bosses bastante divertidas, sendo muito bem sucedidas a nível de passada e evolução, sendo, por vezes, até bastante desafiadoras.
No final, a combinação de combate com o tanque ou mech, o sistema de progressão clássico no estilo RPG, a história agradável e os tais “labirintos” com os seus enigmas, contribuem para garantir que a experiência nunca seja realmente repetitiva a longo prazo… o que, para um fã do trabalho de Toriyama, pode ser exactamente o que pretendiam: a visão do autor, devidamente recriada num entretém interactivo. Contudo, dados os seus já mencionados aspectos mais instáveis, irritantes e datados, os demais jogadores poderão ter alguma dificuldade em se ajustar a esta interacção. Diria mesmo que poderá frustrar os menos pacientes.
De notar que o jogo e a série de Sand Land são dois projectos paralelos, intimamente ligados entre si. Isto fica particularmente evidente pelo departamento técnico e artístico, capaz de nos oferecer algumas sequências muito sugestivas que poderiam mesmo ser confundidas com a série de animação. Mesmo que acabem por se perder no desolado mar de areia que caracteriza o cenário principal, ninguém ficará indiferente à arte única e efeitos visuais tão bem conseguidos. Aliás, uma coisa deve ser dita: o uso de cell shading neste título está entre as melhores adaptações deste estilo visual que já vi num videojogo.
Ao adoptar os traços anime, as personagens e veículos, não só apresentam o clássico contorno preto, mas também as hachuras e sombreados parecem vir directamente da arte manga, contribuindo para criar uma óptima atmosfera durante a história. É só preciso assinalar que nem sempre as animações apoiam bem estes esforços, muitas vezes mostrando-se apressadas, sendo o principal contributo para a tal forma como os protagonistas se movem no cenário que não gostei. Existem ainda alguns pequenos problemas de pop-up de objectos em distância, shaders que falham e o rácio inconstante de fotogramas na versão analisada (Xbox Series X)em momentos mais frenéticos. Digamos que já vi melhor uso do Unreal Engine 5.
Veredicto
Por mais que eu quisesse mais deste jogo, Sand Land é apenas uma adaptação composta, especialmente para os fãs do trabalho do autor. Pode ser uma experiência agradável mas é, em muitos aspectos, datada. Consegue realmente trazer o estilo e “vibe” de Akira Toriyama, muito graças ao visual fiel. No entanto, a nível de conteúdo as coisas não correram bem, revelando cenários desinteressantes para explorar, algumas lógicas de controlo a precisar de uma revisão e, de um modo geral, uma “pressa” geral em entregar o jogo. Há momentos em que o jogo brilha, como no combate com alguns veículos e nos confrontos com bosses mas fica a dúvida se chegam para redimir o esforço da Bandai Namco e da ILCA.
- ProdutoraICLA
- EditoraBandai Namco
- Lançamento26 de Abril 2024
- Plataformas
- GéneroAcção, Aventura, Role Playing Game
Equilibrado e com boas ideias, os seus erros não o impedem de brilhar.
Mais sobre a nossa pontuação- A arte de Toriyama ganha vida
- As mecânicas de (alguns) veículos são agradáveis e divertidas
- História intrincada e que complementa a manga/anime
- A jogabilidade é algo datada com controlos falíveis
- Mapa é grande mas desinteressante
- Tecnicamente inconsistente, notando-se alguma "pressa"
Esta análise foi realizada com uma cópia de análise cedida pelo estúdio de produção e/ou representante nacional de relações públicas.