Análise – Shenmue III
Quando falamos de Shenmue III e no tempo que esperámos por ele, a maioria falará em 18 anos de espera. Contudo, o projecto só foi mesmo anunciado e iniciado em 2015 via crowdfunding. O que acontece é que os fãs queriam esta sequela lá em 2001 e tiveram de esperar até agora, entre atrasos e adiamentos desconfortáveis.
O fenómeno Shenmue é de assinalar. Esta é uma autêntica aventura do pioneiro Yu Suzuki, um dos pais de grandes clássicos, como Virtua Fighter que tanto inspira esta série. Para quem não conhece, este é um jogo de aventura, com elementos RPG e bastante ênfase em combates de artes marciais. Recentemente, tive oportunidade de revisitar esta importante série com Shenmue I & II HD Collection. Se, para muitos, este foi o reviver de um clássico intemporal, para outros essa remasterização acusou o peso da idade nas lógicas e mecânicas de uma série que pareceu não envelhecer muito bem nesse formato “HD”. Acontece muito isto com estas reedições. Há jogos que pertencem ao nosso imaginário e que, uma vez reeditados, não conseguem equivaler-se à realidade actual. É por isso que este promissor Shenmue III tinha outra responsabilidade: a de revitalizar esta série clássica.
Parece que estou já a adiantar-me com algum “veredicto antecipado”, sobretudo para aqueles que gostam de ler nas entrelinhas. Contudo, não fui só eu que deixei no ar a dúvida se Shenmue III iria vingar ou não. A própria produção fez isso mesmo de forma indirecta, começando com trailers que mostraram um jogo francamente aquém do esperado e vários adiamentos para “polir” o produto final. Sendo um jogo suportado por crowdfunding, é de esperar deslizes de tempo ou de orçamento. Contudo, é também de esperar que um terceiro título de uma série lendária tenha um cuidado acima da média com esse legado. Com isto, já devem estar a prever o que acabou por acontecer…
Ryo Hazuki é o “típico” adolescente Japonês de séries de videojogos, tendo em si uma sede de vingança. A sua missão é vingar o assassinato do seu pai, partindo para o pontapé e murro avulso com estilo, sempre com o assassino Lan Di na sua mente. Hazuki chegou a partir do Japão para Hong Kong e depois para a China (Shenmue II), onde descobriu que fazia parte de uma estranha profecia ancestral. Depois de muito batalhar (literalmente), acaba por conhecer Shenhua Ling, que se torna sua companheira de aventura. A história começou simples no primeiro jogo e acabou a expandir-se, de tal forma, que envolve eventos sobrenaturais. Foi algo que deixou no ar um enredo muito promissor para este terceiro capítulo, que depois demorou a dar continuidade à história.
Neste jogo, os dois aventureiros continuam envolvidos nesta demanda pelo paradeiro de Lan Di, pegando na história mesmo no fim do segundo jogo. Ryo e Shenhua estão nesta fase à procura do pai da rapariga, que foi raptado aparentemente pela mesma organização responsável pela morte do pai de Ryo. Só que, desta vez há outro antagonista pelo meio, Niao Sun. A aventura leva-nos novamente pela China dos anos 80, começando na pequena vila piscatória de Bailu, atravessando depois a China profunda.
Embora considere a história suficientemente elaborada para nos cativar e dar o pano de fundo necessário para a história, não entendo porque a vingança de Ryo e estende por três jogos. E notem que esta história não vai terminar neste terceiro capítulo. A intenção do criador Yu Suzuki é produzir mais jogos nesta história, pelo que o fim deste jogo, tal como nos anteriores, não conclui o arco de história principal.
Acho encorajador que Suzuki pense nestes termos, que a sua criação é um trabalho de continuidade. Contudo, tendo passado quase 20 anos desde o segundo jogo, parece-me um tanto ambicioso demais que este arco se estenda por tanto tempo. Entendo que a busca por Lan Di seja mais um catalisador que uma base de enredo mas é, ainda assim, uma premissa demasiado morosa a desenvolver. E se demorar muito tempo para o quarto jogo, então, o interesse em acompanhá-la torna-se escasso.
Que todos os males de Shenmue III fossem esse enredo “esticado”. Confesso que até gostei de reencontrar Ryo e companhia, com as suas motivações tão claras e, de certa forma, directas ao assunto, que é o que precisamos para retomar a sua aventura. Os jogos nipónicos possuem sempre histórias exageradas ou, de alguma forma, estranhas. E o que me recordo dos títulos clássicos originais, não é bem esse elemento, mas da sua jogabilidade e envolvência. Assim sendo, só era preciso que o jogo capitalizasse nas suas virtudes e, mesmo que a história estivesse incompleta, nos desse entretenimento.
E até consegue. A fórmula é a mesma, agindo como um Role Play Game na sua essência, falando com todos os que encontramos até termos respostas concretas que nos ajudem a progredir. Porque não quero massacrar demais o jogo, não vou falar das (muito) más traduções para Inglês de alguns diálogos. Digamos que faz parte do “charme” do jogo. Gostei de recordar a lógica de termos de explorar as várias áreas por onde passamos, encontrar um emprego para angariar dinheiro, encontrar coleccionáveis e inúmeras outras tarefas que nos vão manter mais ocupados. E, claro, de vez em quando, também temos de enfrentar meliantes em lutas mais ou menos improvisadas, sempre com aquele apurado sentido de justiça de Ryo a activar-se.
O combate será perfeitamente idêntico ao que se recordam dos jogos originais. O que só por si é uma afirmação que tanto de positivo (pela nostalgia) como de negativo. A única evolução que devo assinalar neste terceiro capítulo é a maior resolução das texturas e a óbvia melhor fluidez dos movimentos. De resto, consigo perfeitamente recordar Virtua Fighter com um outra skin mais polida. Murros e pontapés, leves ou pesados, a conjurar combos, não há aqui nada de memorável, a meu ver, mas não deixa de ser divertido e bastante linear. Mesmo que este tipo de interacção de combate com artes marciais não seja a vossa especialidade, vão acabar a dominar as lutas de forma satisfatória.
Já muito se fez neste género ao longo dos anos, é certo. Há jogos de combate que estão anos-luz à frente em todos os aspectos. Se querem ver como eram os jogos de combate nas arcadas há vinte anos atrás, porém, estarão bem servidos. É capaz de ser a interacção mais interessante de todo o jogo, sendo sem dúvida o seu foco. Só tenho pena que estes combates sejam tão raros no início, quase como um “intervalo” do resto da acção bem mais monótona. Felizmente, esta realidade altera-se lá mais para o meio, sobretudo com uns combates em particular que se tornam verdadeiramente épicos e recompensadores.
Enquanto não estamos a combater, entre outras actividades que vamos fazendo, Ryo também gosta de investigar cenas de crimes… que é algo que gostaria de ter de evitar por completo. Muito longe de mecânicas modernas em jogos que envolvem algum formato de investigação, as cenas de crimes são, basicamente, locais onde temos de vasculhar tudo até à exaustão e obtermos alguma resposta no final. Não há nenhuma sequência ou método lógico para seguir. Abram gavetas, baús, etc, interajam com tudo e pronto. Torna-se moroso, aborrecido e sem grande substância. Vivíamos bem se esta componente.
Já falei dos inúmeros diálogos que teremos com outras personagens, da exploração e dos trabalhos de Ryo. Tudo tem um equilíbrio necessário, por causa dos elementos passivos de sobrevivência (fome, sede, força, energia etc). Há aqui um apelo claro aos amantes dos RPG, obviamente. Mas, entrar na rotina de Shenmue III também exaspera um pouco, na forma como consome demasiado tempo. Tempo esse que devia ter sido usado para, por exemplo, desenvolver a história, sobretudo nas questões sobrenaturais implícitas que aqui são relegadas para segundo plano. A história contada não é tanto de fantasia, portanto, perdendo-se nestes pormenores menos relevantes.
Quem sabe a pior das questões nesta fórmula tão desequilibrada, é o grafismo. Já deu para entender que este jogo, em pleno 2019, quer tanto homenagear os clássicos no início do século, que “não recebeu o memorando” que a tecnologia evoluiu. Como já disse, há uma clara melhoria nas texturas e nas animações, mas tudo parece uma simples remasterização dos mesmos jogos de 1999 e 2001. O que saltará mais à vista serão os muitos bugs, como erros de detecção de colisão, personagens flutuantes, animações quebradas, glitches de texturas, enfim. Não preciso enfatizar mais ainda que este jogo foi adiado muitas vezes para “polimento”. Confesso que não parece.
Se pensarmos que Shenmue e Shenmue II foram marcos visuais, também na tecnologia do momento (SEGA Dreamcast), este terceiro jogo é uma contradição dessa tendência. Até tem momentos de bom design e cuidado visual, mas nunca consegue deslumbrar verdadeiramente em quase nenhum momento. Tive esta sensação com aqueles primeiros trailers de jogabilidade que mencionei no início, mas sempre pensei que a Ys Net não iria deixar passar a oportunidade de criar algo moderno, mesmo mantendo a fórmula do passado. Assim não foi, com muita pena minha. Tudo é algo básico e sem brilho. E esta realidade não podia ser melhor demonstrada pelas caras das personagens, numa mistura estranha de anime com realismo, mas que mais parece uma colagem que uma modelação.
Numa sequela, nova edição ou num reboot, seja lá o que for que uma produtora decida fazer para reavivar uma franquia, convém que se inove quanto baste e que se respeite o investimento dos jogadores. Também é bom, claro, que se mantenha o ADN dessa série intacto, mas com moderação. Penso que Suzuki teve imenso medo de inovar demasiado com este terceiro jogo, resultando num título francamente familiar, admito, o que é sempre bom numa série. Por outro lado, avançámos tanto a nível técnico nesta indústria e nos conceitos de videojogo, que tudo em Shenmue III nos parece datado em comparação. No final, fica no ar a ideia que esta foi uma incrível oportunidade perdida para algo grandioso…
Veredicto
As expectativas alimentadas por muitos anos de espera e pelos constantes adiamentos não fizeram nenhum favor aos fãs, à Ys Net ou ao criador Yu Suzuki. Se este Shenmue III tivesse sido lançado logo a seguir ao segundo capítulo, teria ficado para a história como o resultado final de uma trilogia icónica. Tal como está, porém, não é o jogo que os fãs queriam. E é subjectivo afirmar se é mesmo o jogo que Suzuki queria. Está assolado por inúmeros problemas técnicos, que até são possíveis de resolver, é certo, mas, nem são essas as suas principais lacunas. O problema está em todo um conceito ultrapassado do que é um jogo deste calibre e que, infelizmente, falha em atender a essas expectativas tão elevadas. O que é pena, porque os fãs pediam um terceiro título de qualidade.
- ProdutoraYs Net
- EditoraDeep Silver
- Lançamento19 de Novembro 2019
- PlataformasPC, PS4
- GéneroAcção, Role Playing Game
Ainda não tem uma classificação por estamos a rever o nosso esquema de pontuações em análises mais antigas.
Mais sobre a nossa pontuação- Os combates continuam divertidos
- O apelo da nostalgia
- Alguns elementos de RPG
- Enredo "esticado" demais
- Demasiados bugs e erros
- Visual francamente datado
- Os fãs de longa data mereciam bem mais
Esta análise foi realizada com uma cópia de análise cedida pelo estúdio de produção e/ou representante nacional de relações públicas.