Editorial: Jogo, logo sou doido?
Carlos Rodrigues, Produtor de Videojogos, é um dos nossos. É um gamer. E a sua paixão levou-o a ir mais além do que apenas jogar, Carlos perseguiu o seu sonho de os produzir. Do sonho à obsessão, por vezes, é um passo. Mas quando a obsessão é confundida por terceiros com loucura, o caso ganha contornos rocambolescos, sobretudo quando lhe é imposto um internamento por demência pela sua própria família. Acontece que Carlos nunca foi demente.
O caso foi trazido até ao nosso conhecimento pelos nossos colegas da BGamer que fizeram uma entrevista a Carlos e assim ganharam um conhecimento mais profundo da sua vida profissional e pessoal. Na altura, Carlos debatia-se com um cancelamento do seu jogo Magna Mundi, tendo já em confidência evidenciado problemas familiares com o seu pai que o culpava de “isolamento” e de “passar mais tempo no computador que com amigos”. Até aqui tudo nos parece familiar. Quantas vezes não ouvimos expressões deste calibre da parte de amigos ou familiares? O que se passou a seguir, porém, é que torna o seu caso absurdo.
Carlos foi abruptamente internado compulsivamente no dia 13 de Outubro de 2013, por força de agentes policiais, tendo permanecido durante 71 dias no Departamento de Psiquiatria e Saúde Mental do Hospital Egas Moniz em Lisboa. A alegação de uma médica, sua ex-cunhada, indicava que Carlos era “portador de anomalia psíquica”. Durante o seu internamento, Carlos foi forçado a tomar medicação anti-psicótica. Essa sim, enviou-o directamente para outros problemas, certamente também alimentados pelo trauma de todo este processo. Isto sem mencionar o estigma social de ser considerado como louco, sobretudo pela sua própria família que fez questão de divulgar a familiares, amigos e até clientes que Carlos era doente.
Acontece que a nossa Lei de Saúde Mental, apenas acciona o internamento compulsivo de pessoas que, apresentem “anomalia psíquica grave”. Isto pressupõe que a pessoa, entre outras coisas, ” crie, por força dela, uma situação de perigo para bens jurídicos, de relevante valor, próprios ou alheios, de natureza pessoal ou patrimonial” (in: Lei de Saúde Mental n.º 101/99, de 26/07 Cap. I, Sec. III, Art. 12.º). Não sabemos ao certo se Carlos representou para alguém um perigo desta natureza. Mas os pais, o irmão e cunhada, afirmam que o seu familiar “sofre de uma doença mental de evolução prolongada”, justificando-o com um antecedente familiar, o Avô que sofria de esquizofrenia. No relatório do Centro Hospitalar Psiquiátrico de Lisboa, pode ainda ler-se que a sua família alega que Carlos gravava conversas com os familiares e afirmava ser vítima de uma “conspiração”.
O seu internamento foi accionado pela tal médica com laços familiares e uma outra médica estagiária de Psiquiatria que nunca observou Carlos em nenhuma ocasião prévia ao internamento. Não houve um diagnóstico preciso prévio e muito menos uma avaliação cuidada. Mesmo que Carlos tivesse algum problema psíquico, a activação do seu internamento foi tudo menos justa.
Segundo o Jornal Público, o Departamento de Psiquiatria e Saúde Mental do Hospital Egas Moniz alega que houve um processo correcto no seu internamento e que “a Lei de Saúde Mental foi cumprida”. Carlos defende, porém, que neste processo todo, a única situação “delirante” foi recusar aceitar a condição de “doente”. Quem é que, sentido-se consciente e pleno das suas capacidades, simplesmente aceita que é louco, só porque passa muitas horas no computador?
Mas o pior estava para vir.
Durante os tais 71 dias de internamento compulsório, não só Carlos viu a sua vida profissional destruída, a sua reputação manchada e a sua família dividida, como ainda foi sujeito a medicação contra-indicada para uma pessoa nas suas plenas capacidades. Após o internamento concluído em Dezembro do ano passado, Carlos foi ordenado pelo Tribunal a, mesmo assim, manter a forte medicação apesar da alta clínica. Durante penosos meses, a informação do seu internamento foi jeitosamente ocultada pelo Hospital, inviabilizando qualquer processo de defesa nesse período. Entretanto, os efeitos dos químicos presentes na sua medicação levaram-no a problemas depressivos.
Apesar de ter sido libertado do internamento em Dezembro, só a 23 de Abril deste ano é que Carlos iniciou o processo de retirada da medicação e da terapia com antipsicóticos, quando já apresentava um grave quadro de prostração e inactividade. Nessa altura estava também a decorrer uma outra reavaliação psiquiátrica excepcional que determinou que, afinal, Carlos não apresentava “a presença de alteração de pensamento ou de percepção, compatível com sintomatologia psicótica”. Afinal, Carlos era são.
Seguiram-se novas sessões jurídicas e, novamente, com recurso a avaliação médica e com recurso a testemunhas, chegou-se à conclusão que Carlos não padecia de qualquer psicopatologia. Finalmente, a 1 de Julho do corrente ano, o Ministério Público dá razão a Carlos e ordena o fim dos tratamento psiquiátricos. Depois de seis meses de internamento, tratamentos injustificados, estigmas, perdas profissionais e, acima de tudo, de degradação da sua saúde, Carlos Rodrigues viu justiça ser feita.
Por pertencermos ao meio, por louvarmos os esforços de todos os que nele investem e porque somos todos humanos, acima de qualquer outra coisa, não podemos deixar passar em claro todo este enredo.
Ninguém está acima dos direitos fundamentais do indivíduo, do ser Humano. Ninguém, com ou sem poder clínico ou jurídico, tem o direito de prejudicar a vida social ou profissional e muito menos a sanidade, seja ela de quem for. O final desta história é positivo mas com imensas reticências. Ninguém vai devolver ao Carlos os seus meses perdidos em tratamentos dados a pacientes com quadros de esquizofrenia, psicose ou depressão profunda. Essa medicação é, à falta de melhor definição, destrutiva em pessoas que dela não precisam.
Os familiares de Carlos não desejaram o melhor para ele. Desejaram impor-se, talvez por achar que o seu ponto de vista é que deveria prevalecer, perante a forte convicção de um homem que persegue um sonho, contra tudo e todos. Mas os ambiciosos são assim, incompreendidos e rotulados. Muitos de nós somos considerados “maluquinhos” pelas horas que dedicamos a este meio, pelas imensas perdas sociais que temos porque “ficamos em casa a jogar ou ao computador”. Sorte a nossa de não termos uma médica mercenária na nossa família, disposta a assinar compulsivamente atestados de demência ou uns pais que acham que estamos a “estragar” a nossa vida.
E que Lei é esta que permite que uma pessoa seja internada (pior, medicada) sem uma competente análise à sanidade e competências de um cidadão? Porquê a demora até fazer prevalecer o bom senso e só agir perante insistentes pedidos do cidadão de fazer valer o seus direitos? Esta história ultrapassa a barreira do mundo dos videojogos. Mas enquanto se mantiverem os estigmas de que os jogos causam isto e aquilo, nem mesmo os produtores estão a salvo.
Ao Carlos Rodrigues, o WASD manda um desejo de rápidas melhoras e recuperação do que perdeu, na medida do possível.
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