Editorial – Que se passa Electronic Arts?
Em tempos, a Electronic Arts foi uma das melhores empresas de videojogos que há memória. Em tempos, editou clássicos que pertencem ao nosso imaginário, como SimCity, Command & Conquer, Dead Space, Burnout ou Medal of Honor. Tempos idos…
Não escolhi esses jogos como referência por mero acaso. São quatro séries absolutamente geniais que foram em tempos jogos de culto e que, subitamente, desapareceram do panorama ou tornaram-se séries banais. Outras, como Need For Speed, Mass Effect, Dragon Age, The Sims, Battlefield ou FIFA até receberam um tratamento mais dedicado, mas alguns também não são propriamente os jogos que todos queriam jogar. Enquanto todos tentamos perceber porque motivo a EA aposta numa franquia para destruir outra, os fãs perdem a paciência com os jogos que nos chegam. A pergunta que fazemos sempre é: de quem é a culpa?
Só que, se calhar, a resposta é mais difícil de dar que imaginamos. No recente Relatório Financeiro que noticiámos, a EA anunciou que os seus principais jogos venderam aquém das expectativas. Ok, convenhamos que há estúdios que apenas podem sonhar em vender “apenas” 7.3 milhões de unidades, como Battefield V vendeu. Mas, notem que estes jogos representam um enorme investimento de capital e recursos que, depois, precisam ser lucrativos para que a produtora e a editora obtenham os óbvios lucros. Se falham é porque, se calhar, a sua estratégia não é a melhor.
No caso de Battlefield V, de facto, os problemas até são simples de identificar. Tudo começou com uma era histórica que, apesar de ser muito desejada pelos fãs, não foi particular novidade. Ir para a segunda guerra mundial era algo desejado, mas Call of Duty WWII já o tinha feito. Battlefield 1 também parece ter uma oferta francamente semelhante a nível de jogabilidade e visual, mantendo 4 milhões de jogadores activos, mesmo depois de BFV ter sido lançado. Apesar disto tudo, a expectativa era grande. Mas, depois a produção fez duas coisas impensáveis: mudou a História e afastou os jogadores.
Um pouco por toda a web, vários jogadores insurgiram-se com a decisão da DICE de incluir mulheres-soldado nas batalhas históricas retratadas em jogo. Não é que não as houvessem, notem, mas, no rigor histórico, não estiveram assim tantas mulheres na frente de batalha, segundo alegaram na altura os críticos. O problema é que este desejo de rigor histórico, exacerbado com algumas reacções mais intempestivas, foi confundido por misoginia. E tudo poderia ter sido sanado por algumas palavras de apaziguamento dos produtores. Mas, ao contrário, alguns elementos da produção decidiram mesmo vir a publico dizer para os jogadores não jogarem BFV se não queriam ver mulheres no jogo…
Esta é uma era de “politicamente correcto”, onde tudo o que não seja “padronizado” parece um ataque. É certo que muitos jogadores fizeram algumas alegações machistas, chegando mesmo a retratar a sua opinião com memes ofensivos. Daí a achar que a observação de inexactidão histórica era também um acto de misoginia, pareceu demasiado forçado. Apesar de tudo, Battlefield “vende” uma representação histórica na sua oferta. Representação, essa, que foi sempre muito bem retratada ao pormenor em outros jogos. Abandonar esse conceito a bem de uma “abrangência”, parece-me fruto de uma falta de senso do meio onde estão e que pretendem servir.
Afinal, este é um jogo e não um fórum público de debate social. O mesmo acontece com outras opções de design neste jogo, como a remoção das cruzes suásticas das fardas Nazis, como um “apagar” da História que não faz qualquer sentido. Há um medo latente de serem alvo de algum partidarismo, quando, na verdade, os jogos não passam de meras peças de entretenimento, como um filme, por exemplo. Dizer aos jogadores que se sentiram afectados para não o jogar, é o mesmo que dar um tiro no pé. E, talvez por isso, as vendas ficaram aquém do esperado, aliado, claro, à acusação que o jogo era uma curta evolução técnica do anterior.
Só que não foi só neste jogo que a EA falhou redondamente. Parece que os seus executivos não conseguem analisar o mercado como deve ser, vendo-o apenas na interpretação de dígitos em tabelas de cálculo. A sua clara aposta em jogos multi-jogador de mundo aberto, não trouxe qualquer vantagem. Need For Speed foi um exemplo flagrante. E não faz qualquer sentido que a Bioware crie um MMO com Anthem se o seu grande trunfo criativo foram sempre os RPGs. Não estou a dizer que a produtora não seja capaz, mas a sua herança de Dragon Age e Mass Effect deixa muitas saudades, obviamente.
Também Apex Legends parece uma aposta estranha. Nem é só porque também BFV iria ter também um modo Battle Royale, agora adiado pelas razões óbvias. Numa fase em que alega que os seus lucros estão abaixo das expectativas, a decisão da EA criar um jogo free to play é, francamente, inconsistente. O modelo a apostar é claro para todos, querendo ter o mesmo sucesso que a Epic Games teve com Fortnite. A questão é que vem tarde na “onda” do Battle Royale e mesmo com o sucesso das primeiras horas, há a dúvida que assim se mantenha por muito tempo. Isto porque já todos sabemos qual é o plano da EA.
Microtransacções. Foi o grande problema de Star Wars Battlefront II, um jogo que pode ter estragado a relação da EA com a Disney para sempre. As caixas de loot deram tanto que falar nesse jogo, compradas com dinheiro real e com uma componente de “jogo de azar” demasiado gritante, que transpôs o problema para outro jogo seu, FIFA 18/19 e o seu FIFA Ultimate Team. Esta situação até gerou um debate mundial que levou países a proibir caixas de loot e a declarar a compra das mesmas como ilegais para menores. Ainda assim, é claro que a EA não vai desistir desse modelo de negócio, mesmo que tenha cedido em parte com algumas alterações nas suas séries.
Uma das evidências que não vai desistir de ganhar dinheiro com este modelo, está no fim dos passes Premium nas suas principais franquias. Longe vai o tempo em que os jogos vendiam directamente e davam lucro das vendas directas. Agora, parece que a ambição (leia-se “ganância”) de muitas empresas as leva a facturar além das vendas, seja com passes de época, seja com as microtransacções. O grande problema deste modelo de negócio é que desvirtua-se completamente o jogo em si, se se pode comprar tudo com dinheiro real. Na maioria dos casos é tudo cosmética, mas não deixa de ser uma lógica divisória e capitalista, onde a jogabilidade quase passa para segundo plano.
Por fim, é preciso falar numa outra falha tremenda da Electronic Arts. Já mencionei o abandono ou a mudança de rumo inexplicável de algumas franquias. Nunca mais tivemos um SimCity de qualidade, ainda hoje esperamos por um reboot da série Command & Conquer e em que gaveta mais sombria andará Medal of Honor? Todas séries de culto, que, infelizmente, tiveram pelo caminho umas tentativas falhadas de revitalização. O que define uma editora são os seus IPs (Intelectual Properties, designação dada a franquias de jogos detidas pelas editoras). E para cuidar deles, é preciso criativos… e estúdios.
Quantos estúdios já fechou a EA? Criterion, Maxis, Danger Close, Visceral… só para nomear alguns. Acredito que alguma reestruturação seja necessária para manter os projectos apetecíveis para os accionistas e investidores. Contudo, com o fecho destes e outros estúdios, também vimos o fim aparente das suas franquias dedicadas, criando um vazio perturbador, numa EA que só parece focada no lucro rápido dos seus jogos do momento. Nada disto faz sentido no mundo do gaming, talvez faça algum sentido no mundo do capitalismo de empresas que facturam milhões.
Mas, o que é a EA afinal? Uma corporação meramente capitalista? Ou uma editora histórica de jogos, muitos dos quais temos tantas saudades? Teremos de esperar para ver o que está a planear. Mas, vemos esse futuro com alguma apreensão. É que nem abordei outras apostas falhadas e decisões inconsistentes pelo caminho, como a péssima gestão regional, sobretudo na Europa, ao nível de representações e distribuição. Enfim, os estúdios EA que se cuidem e as suas franquias que resultem.
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