Estará a criatividade ameaçada?
Quem por hoje passar pelo site da EPIC Games verá um esqueleto. Não, não é um esqueleto como decoração. Não estou a falar literalmente. É, isso sim, um esqueleto da empresa que foi outrora. Com a notícia que publicámos hoje, a Microsoft adquiriu os direitos sobre o último grande IP (Intelectual Property – Propriedade Intelectual, termo usado para os direitos sobre um determinado título, neste caso de uma série de videojogos). Sem Gears of War, que será da EPIC Games? E o que será do mercado se as grandes empresas editoras continuarem a açambarcar títulos para si?
Falo tanto da Microsoft como da Electronic Arts, Microsoft, Sony, Ubisoft ou mesmo a quase desaparecida Activision e outras de menor dimensão. As grandes distribuidoras e editoras estão a “engolir” tudo o que é estúdio para si de uma forma desenfreada e a premiar a quantidade, ao invés da qualidade. A EPIC seria um dos poucos redutos do que foram outrora os grandes estúdios independentes que só recorriam aos “tubarões” para distribuir os seus jogos. Como vos disse no início, passem pelo site da EPIC e vejam a carteira de jogos actual: https://epicgames.com/games
Repararam? Estando a série Gears of War agora na total posse da Microsoft (e dado o seu desenvolvimento a outro estúdio propriedade da empresa de Bill Gates), só a série menor Infinity Blade (um jogo para plataformas móveis com resultados medianos) ou um projecto com ar de futuro falhanço chamado de Fortnite (jogo de zombies em mundo aberto) é que lhes pertence. A EPIC parece um estúdio acabado de abrir ou sem grande ambição.
Se vos disser que alguns dos melhores jogos actualmente no mercado foram criados pelo motor gráfico da EPIC, ficariam surpreendidos. Se vos dissesse que esse motor se chama Unreal, então já começam a ver as coisas de outra maneira. É verdade, a EPIC é, talvez, das empresas com mais influência no mercado de videojogos, diria de sempre. Grandes vultos deste meio como Borderlands, Bioshock, Dishonored, Mass Effect, Batman Arkham e tantos outros foram criados pelo motor gráfico Unreal da EPIC. Então onde falhou a EPIC?
Não posso dizer ao certo, porque se calhar nem falhou. Talvez apenas optasse por continuar a dar grande uso ao seu motor gráfico e limitar-se a emitir licenças do mesmo e obter rendimentos dessa máquina oleada. Quem perde, somos nós que vimos a lendária série de jogos Unreal (que deu o nome ao motor gráfico) desaparecer e agora a fantástica série Gears of War segue para as mãos da Microsoft. Fica por aqui mais um capítulo dos grandes estúdios independentes.
Poderão dizer que nada terminou. Claro que não. Há muitos estúdios a produzir mais e bons jogos. Mas quem os controla no momento? As grandes editoras estão a comprar IPs e até mesmo estúdios e a pressioná-los para produzir em timings irrisórios e com promessas demasiado elevadas. Já lá vai o tempo de grandes jogos demorados na sua produção, de estúdios que se estavam a marimbar para vendas ou para prazos. Hoje em dia, estúdios como a Infinity Ward, Bioware, DICE, Konami, SEGA ou Blizzard estão sob o jugo penoso dos seus patrões gigantes, que os estrangulam e encostam num canto pouco produtivo quando não cumprem.
Se não se submeterem, são audazes e apostam forte, sob pena de falhar. Assim, de repente, lembro-me de como a Bungie conseguiu fugir ao braço forte da Microsoft. Mas também me lembro de como pioneiros como John Carmack que abandonou o mundo dos videojogos quando a sua ID Software (Doom, Quake) foi vendida à Zenimax. Ou como as empresas Bullfrog (Syndicate), Looking Glass (Thief) ou Acclaim (Mortal Kombat) foram obrigadas a vender os direitos das suas séries sem qualquer domínio sobre elas. No final, o que conta parece ser o dinheiro das vendas. A criatividade implícita na propriedade intelectual, essa, fica a dançar ao som do mercado, nas mãos de uma ou outra produtora mais ou menos ambiciosa. Não necessariamente com a mesma qualidade.
Felizmente, penso eu, há algumas (poucas) excepções no mercado. A gigante Sony Computer Entertainment, por exemplo, é conhecida por dar bastante liberdade criativa aos seus estúdios. Vejam os sucessos criados pela Naughty Dog (Uncharted, The Last of Us) e as extravagâncias jamais permitidas noutro lado da Polyphony Studios (Gran Turismo) ou da Quantic Dream, esta última com dois projectos arriscadíssimos, o mais recente, Beyond: Two Souls quase um fiasco comercial. Neste aspecto, a Sony arrisca. Permite criatividade e permite mais ousadia. Mas é raro. E se não gerar dinheiro, é a própria empresa que sofre. Que o diga a THQ que abriu falência muito recentemente com títulos que foram autênticos flops de vendas, por mais criativos que fossem.
Resta-nos ver o que se vai passar nos próximos anos. A ver pelo que temos agora, pelas diversas notas de rodapé e inúmeros problemas e repetições dos jogos modernos, parece um futuro sombrio. Produzir videojogos tornou-se uma indústria lucrativa onde a criatividade é opcional e só as vendas ditam a continuidade ou o fim das empresas. É triste.
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